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O Jogador de Sinuca e o Julgamento de Paris

O dia nasceu cinza, combinando com a rotina e os anseios de Charlie “dois dedos” Gomez. Charlie, um atleta mediano do feltro verde vivia sua vida um dia por vez, de bola 8 em bola 8 e já havia muito que tinha posto um sorriso no rosto de alguém por conta de um trick shot, tanto na sinuca como na vida. Sua vida era como o dia, um cinza sem fim trancado na mesmice de um longo banho-maria.

Charlie estava na época em que normalmente as pessoas dão uma guinada na vida, quando o jogo começa a se definir. Mas não era o caso do nosso “dois dedos”, apelido esse ganho nos torneios de billiard da ala norte de seu condado quando ainda não ostentava a calvície e seus cabelos lembravam um lindo por do sol alaranjado; agora, o que restava, se mostrava um dia londrino, antecipadamente grisalhos.

10. Essa não era a nota de Charlie pelas suas apresentações nas mesas do mundo e sim a média de suas colocações nos campeonatos que disputava, sempre por volta do décimo lugar. Suas partidas, apesar do resultado morno, sempre se mostravam dramáticas, Charlie perdia suas partidas não pela superioridade técnica de seus adversários, mas pelo fato de que suas tacadas deixavam a bola a poucos centímetros de onde desejava; não era um mau jogador, faltava-lhe muito pouco para conseguir o objetivo, sempre alguns centímetros, dois dedos...

Durante o campeonato aberto do condado daquele ano, Charlie encerrou sua participação no sétimo lugar. Após a entrega das taças, bebeu algumas doses de Sherry com seus amigos de taco, vestiu seu surrado sobretudo e despediu-se, deixando-se levar pelo vento do inverno.

Pouco se soube, ou melhor, nada se soube de Charlie por um tempo, não aparecia para os jogos de terça-feira, nem para assistir aos jogos de cricket e conferir suas apostas. Assim se passaram alguns meses.

Às vésperas do grande campeonato anual, Charlie reapareceu no clube. Tudo como antes, a não ser por um detalhe. Uma grande aliança dourada no dedo anelar da mão esquerda. Não era um simples anel, ostentava ele uma grande coroa dourada que quase lhe ocupava a falange inteira. Dois Dedos havia se casado, dizia que encontrara a felicidade numa breve viagem de férias, que por questões do coração havia se estendido e se materializado em seu dedo. Afora isso, lembrava o velho Charlie.

No dia seguinte, ainda cedo para os padrões da época, Charlie chegou para se preparar para sua primeira partida no campeonato. Sua partida se desenrolou da mesma maneira como sempre se percebia e se esperava do velho Charlie Dois Dedos, no entanto aos poucos se notou um pequeno-grande detalhe, os míseros dois dedos não faltavam mais nas tacadas de Charlie e seu jogo estava primoroso.

Os amigos não entendiam o que acontecera com o jogador mediano mais consistente que já haviam conhecido. Uns diziam que o amor lhe dera a confiança necessária para superar suas dificuldades e segurança para arriscar suas melhores tacadas. Outros entendiam que a grossa aliança tratou de equilibrar sua mão na mesa e corrigiu sua linha de tacada.

O que de fato ocorreu, não se sabe. Sabe-se apenas que a partir desse dia, todos conheceram e admiraram Charlie “Dedo de Ouro” Gomez.

Em 24 de maio de 1976 foi realizado o Paris Wine Tasting, organizado pelo inglês Steven Spurrier. Tal evento tratava-se de uma degustação às cegas de diversos vinhos tintos e brancos franceses e californianos.

A competição contou com a presença de alguns dos maiores nomes da enologia daquela época, além de participantes do quilate de Chateau Haut-Brion e Mouton-Rothschild. No entanto, os grandes vencedores do concurso não foram os franceses, até então senhores absolutos do lugar mais alto do mundo do vinho, e sim os desconhecidos, subjugados e até inferiorizados vinhos californianos.

O clima instaurado na França por conta dessa “tragédia” rendeu críticas e deboches à degustação por parte dos maiores veículos de comunicação franceses, porém, a opinião dos especialistas foi clara em declarar o Cabernet Sauvignon Stag's Leap Wine Cellars de 1973 e o Chardonnay Chateau Montelena 1973 como os grandes campeões.

Não há como saber se o resultado seria outro se os julgadores soubessem o que estavam avaliando ou há quanto o vinho californiano já possuía tal qualidade, mas não era reconhecido. O que se sabe, é que desde então a California colocou de uma vez por todas seu pininho no mapa mundi da rolha.

Gevrey Chambertin e o Destino de Napoleão

Uma agulha no palheiro, essa era a chance de encontrar um russo apreciador de vinhos. Claro que a vodka ainda era sua preferida, a paixão de todo bolchevique, mas o vinho ao que pareceu guardava estreita ligação com Dimitri.

Pois Dimitri, essa era a graça desse cosaco de bochechas rosadas como sua bandeira, era um grande apreciador de tintos, brancos, rosés, colheitas tardias, enfim, a uva fermentada em todas as suas formas.

Como já havia se percebido, Dimitri flertava constantemente com a política e guardava profunda admiração pelas biografias dos grandes líderes de seu país e mais tarde ficaria claro que seu apreço era endereçado a todos os líderes, independente de suas nacionalidades.

Costeando o Rio Danúbio, Stefano e Dimitri, saem das ruas principais de Budapeste, ainda observados pelo Castelo de Buda e entram no wine bar onde o russo havia reservado uma mesa. Apesar do inverno, o lugar estava bastante cheio. Duas pesadas portas de vidro tratavam de deixar o frio lá fora enquanto uma bem localizada lareira deixava o grande ambiente interno na temperatura ideal. Um grande balcão servia de morada para diversas garrafas onde, segundo constava, se preparavam premiados drinks de autor e alguns solitários tratavam de esquecer seus problemas.

Stefano estava envolto pela atmosfera do lugar e voltou a si com o chamado de Dimitri para sentar-se a mesa com duas mulheres que ali estavam. Eram duas alunas de Dimitri, que era professor de história na Universidade de Budapeste. As duas estavam a falar sobre a última aula, que trazia a biografia do maior general francês de todos os tempos. Dimitri, aparentemente alheio aos comentários das garotas, ordenou um vinho ao garçom, que logo se afastou.

Continuando com a conversa Dimitri, novamente embuído do espírito um tanto nostálgico e outro tanto poético, versava sobre os grande feitos de Napoleão Bonaparte. Dizia o professor que amava a Russia acima de tudo, mas naquele dia Napoleão havia feito o leste se curvar, e por consequencia também ele se curvara.

A Inglaterra, não satisfeita com a frágil paz que havia se instalado entre ela e a França, começa a costurar alianças para se levantar contra o império francês, e nessa coalização entram o império austríaco e russo, contava Dimitri. Armou-se uma revolta e após um breve período estavam todos os envolvidos em um clima de guerra, um exército marchando em direção ao outro.

Napoleão, grande estrategista que era, antecipou movimentos, definiu posições e usando táticas certeiras aniquilou as tropas inglesas e seus aliados austríacos e russos. Tudo isso durante 9 longas horas do dia 2 de dezembro de 1806. Essa batalha, a história tratou de chamá-la de Batalha de Austerlitz ou a Batalha dos 3 imperadores, e foi a vitória mais emblemática de Napoleão.

Dimitri dá um salto da cadeira, olha para Stefano e com a mão por dentro do próprio paleto, tal qual Napoleão, brada como um Imperador:

- And after the triumphant victory Napoleon said to his loyal soldiers: All you need to say is ‘I was at the Battle of Austerlitz‘ and everyone who hears will nod their head and think, ‘There goes a brave man!

Napoleão sabia, àquela época, que havia chegado ao topo, estava no apse, e tinha consciência de que lá estava. Costumava falar que fazia a sua própria sorte e quando achava o que lhe era melhor, aproveitava e saboreava o gosto da vitória. Esse era o seu destino, o melhor, a glória.

Nesse momento Dimitri é interrompido pelo garçom, que lhe oferece a rolha, questionando se poderia servi-lo. Tratava-se de um Gevrey-Chambertin. Um borgonha do Domaine Armand Rousseau. Chambertin, é uma sub-região incrustada no coração da Borgonha, onde se produz em uma boa safra vinhos inigualáveis, robustos e com um excelente potencial de guarda, afora seu aspecto militar, forte escuro e pesado.

Stefano, com todo esse ode à França, já estava tramando seu próximo, novo-velho destino, quando o cossaco provou que ouvira a conversa desde o ínicio.

Dizia ele que um Chambertin era o vinho preferido de Napoleão. Depois de provar esse vinho não se satisfez com nenhum outro, já havia encontrado sua glória, havia encontrado seu destino. Napoleão sempre soube quando havia atingido o topo.

Pizzorno e o Mais Egoísta dos Vinhos

Despedidas, às vezes, se arrastam por algum tempo e não se constituem apenas de um aceno, um aperto de mãos, um abraço ou um beijo. Gonzalo e Stefano haviam se despedido mais de uma vez e teimavam em se reencontrar.

Stefano partiria do Uruguai no dia seguinte, e deixando a Finca Narbona para trás, tomaram o rumo de Punta del Este. De Carmelo até Punta há um longo trajeto a ser percorrido. Do lado de fora da caminhonete o visual parecia uma fazenda sem fim, apenas possível separá-las pelas cercas que de tempos em tempos apareciam para sugerir que ali habitavam outras criaturas afora o gado.

Com o bater dos materiais de pintura no porta-malas, Stefano se recordou das palavras de Gonzalo quando ainda estavam em solo portenho, sobre o que pensava acerca das obras de arte.

Na tentativa de aclarar suas idéias ao amigo, Gonzalo disse novamente do seu gosto em produzir arte, em qualquer de suas formas, e que ela é a forma mais egoísta de qualquer expressão artística.

- Para ser arte, el objeto no puede tener ninguna otra habilidad de ser ella misma. No puede haber otra opción que admirar. El arte es la actividad más egoísta del mundo, porque el arte no tiene otro propósito que ella misma.

Uma obra de arte não pode ter qualquer outra razão de ser afora ela mesma. Assim são elas, pensou Stefano, ficam ali a espera de um admirador para que possam cumprir seu destino, e ao mesmo tempo os admiradores ficam à mercê dessa arte, para que se possa, ao menos por um pouco, nos deixar levar por outras emoções e sentidos. Tal como Nietzsche que disse que, “Temos a arte para não morrer da verdade”.

Antes de chegar a Punta del Este, um desvio no caminho para deixar Stefano no Aeroporto Carrasco em Montevideo. Check-in feito e ainda restavam algumas voltas no ponteiro para o avião de Stefano partir sabe-se lá para onde. A dupla se acomodou em um restaurante e pediram, para acompanhar o suculento chorizo, mais um exemplar da uva definitiva do Uruguai, a Tannat.

O garçom não tardou a chegar com um Pizzorno Reserva Tannat 2006, tinto elaborado com as melhores uvas dos vinhedos Pizzorno em Canelones; tem potencial de guarda de 10 anos e é dotado de uma cor rubi, quase púrpura com aroma de ameixas e frutas do campo. Os vinhos de tannat possuem bastante corpo e estrutura e denotam elevada presença de taninos, um vinho marcante que, segundo quem entende, é ideal para acompanhar pratos com molhos fortes, carnes vermelhas, isto é, à altura da força desse vinho.

Enquanto o vinho era aberto, Stefano e Gonzalo pareciam dividir o mesmo pensamento, se o vinho poderia ser considerado uma obra de arte. Ao que deram o primeiro gole decretaram que o vinho não é uma obra de arte, não é o vinho algo para ser admirado, venerado. Para que ele atinga nossos sentidos, o vinho deve ser consumido, para que ele aconteça ele precisa se doar. O vinho, portanto, não é uma obra egoísta, mas um tannat, de fato, é o mais egoísta dos vinhos.

Baron D'Arignac e o Dia para Lembrar

Esses dias eu li que nenhum homem é uma ilha, a não ser que você se chame Fernando de Noronha. Piadinhas de fora, é verdade que todos interagimos e somos influenciados por outras pessoas o tempo todo. O que uma pessoa faz da sua vida pode ter reflexos positivos ou negativos na vida de outras, e elas nem precisam interagir diretamente.

Posso dizer com uma certa segurança que a vida do Ayrton Senna influenciou a minha, e tenho um pouco de dúvida que a minha tenha influenciado a dele. Afora um autógrafo em São Paulo em 1990 ele nunca mais me viu, já eu via ele toda a semana.

Eu adorava ver a Fórmula-1 naquela época, ainda assisto sempre, mas naqueles tempos eu participava das corridas, não era só um gurizinho de pijama tomando Nescau domingo de manhã, era meu herói que estava competindo e eu assistia tendo a certeza de que ele ia fazer todo o possível para ganhar, de tudo e de todos. Ele pregava essa determinação, não importando quem tinha mais condições, quem tinha melhor carro, ou quem conhecia melhor a pista, ele procurava fazer o seu melhor sempre; independentemente das adversidades fazia as coisas ao seu modo.

Depois de ter atingido o ápice, em uma temporada a de 1993, Senna estava com um carro bem inferior aos demais. Teve um dia, era domingo de páscoa de 1993 e eu estava na praia. Me lembro que acordei cedo para comer chocolate e ver o Grande Prêmio da Europa. Meu pai já estava às voltas com o churrasco do dia e eu na frente da televisão esperando começar a corrida.

O tempo não estava dos melhores, na praia, na corrida estava horrível...uma chuva, dizem que foi o pior clima em que uma corrida começou. Luz verde...e foi aí que aconteceu, após a largada, foi dada a volta mais perfeita da história da Fórmula-1. Senna largou em quarto, caiu para quinto, e passou todo mundo até terminar a volta em primeiro lugar. O restante da corrida foi nesse mesmo nível, um espetáculo.

Acabada a corrida, parecia que o Brasil tinha ganho uma copa do mundo na rua da minha casa. Os vizinhos conversando sobre a vitória, falando dos detalhes do brasileirinho, com um carro inferior, superando o clima e os adversários de uma maneira vexatória de tão superior. E eu lá, participando de tudo isso, meu herói tinha vencido. Eu me lembro desse dia.

O Baron D’Arignac é a marca de vinho francês mais consumida no Brasil, está largamente distribuída em lojas especializadas e também em supermercados a preços bastante acessíveis. O tinto, elaborado com uvas de diversos vinicultores de Languedoc Roussillon e produzido pela Les Caves Landira, é um vinho fácil de se beber e acompanha bem carnes e queijos variados, dizem os especialistas. Esse era o vinho preferido do meu avô.

Teve um dia, eu estava começando a entender o que estava fazendo na faculadade de Direito, devia ter uns 20 anos. No final daquela semana, fui para Caxias, meus pais estavam viajando e fui jantar na casa do meu avô, Carlos Cesa. Nós conversamos sobre o que eu estava aprendendo na faculdade e ele me mostrou toda a coleção de livros de Direito Comercial que ele tinha. Depois preparou uns sanduíches de lebre em conserva, com pimentões e a “pomarola do vô” e tomamos uma garrafa de Baron D’ Arignac, aliado a diversos comentários da minha vó para que ele parasse de beber.

Entre uma lebrezinha e outra, perguntei qual vinho era o melhor de se tomar, ao que ele me respondeu que “vinho bom é o vinho que a gente gosta, independe de preços, avaliações, apenas seu mais puro gosto. E isso não vale só para os vinhos, vale para tudo; vá sempre pelo seu gosto”. Eu me lembro desse dia.

Hoje, o Senna e meu avô não estão mais por aí, mas suas experiências e exemplos, seja pela televisão ou pela mesa de jantar, contribuíram de alguma forma para a minha própria vivência. É importante, de tempos em tempos, lembrar desses dias.

Finca Narbona e a busca da Perfeição

Dizem, os professores com seus cardigans, que tudo tem que ser feito devagarinho, um passinho por vez. Stefano havia tido a primeira aula dessa matéria quando estava viajando sem rumo e acabou na Argentina. Afora o excelente Malbec que conheceu, levou importante lição do, agora amigo, Gonzalo sobre como encarar a estrada da vida e do vinho e conviver com a certeza de que ela é, de fato, infinita.

O banco frio e desconfortável do Terminal del Sol em Mendoza era o único divã disponível para Stefano encostar a cabeça e deixar fluir suas idéias. Nos últimos tempos, sua vida estava sendo movida pelo medo de não conhecer tudo, de não experimentar; impulsos esses que, apesar de levarem para frente, estavam cobrando um preço muito alto pelo trajeto.

Nessas horas é bom ter amigos, de longa data ou de ontem, pessoas que tragam um pouco de ar fresco e nos façam olhar em outra direção.

Um agudo barulho de freada de automóvel ecoou pelo átrio do Terminal de Omnibus fazendo Stefano dar um pulo do banco e acordar do transe. Ainda atordoado, vê uma figura bonachona e conhecida sair apressadamente de uma Caminhonete. A sua carona, com atraso, finalmente havia chegado.

- Perdón por la demora, Stefano. Estaba comiendo unos panchos con mostaza y se me hizo tarde.

Gonzalo, dessa vez, não parecia aquele senhor com ar acadêmico que havia lido todos os livros do mundo. Continuava sábio nas palavras, por óbvio, mas sua calça jeans, o cinto escondido pela barriga proeminente e a camisa polo amarela já davam a entender que a viagem seria diferente.

O caminho dos vinhos é infinito e o que vai em direção a Punta del Este é longo, mas termina. Gonzalo ia para casa, descansar; Stefano, para qualquer lugar. E naquele momento, o lugar era a RA-7 com destino a borda do Rio de la Plata.

Não havia espaço para o mochila de Stefano em qualquer lugar da espaçosa caminhonete de Gonzalo. A profusão de telas, rolos e maletas era tanta que a tal backpack e a sacola com uns vinhos comprados em Mendoza foram junto no banco da frente.

- O que são todas essas telas e materiais? Perguntou um Stefano, para variar, intrigado.

- Es el material de una de mis aficiones. Yo hago la más egoísta de todas las cosas en el mundo, obras de arte. Es una terapia para mí pintar cuadros y otras cosas también.

Gonzalo tinha uma cara de que gostava de deixar fluir sua criatividade, demonstrar aos outros seus pensamentos por outras vias. Nessa conversa percebeu-se que guardava profunda admiração por Vincent Van Gogh. Via nele todas as qualidades que admirava na pintura. Fã assumido do holandês, lhe agradava muito Os Comedores de Batata, mas não deixava de salientar que esses poucos gênios trazem consigo uma história igualmente única.

O nosso cortador de orelhas, explicava Gonzalo, estreou na vida com o mesmo nome do irmão que havia morrido um ano antes. Ou seja, os pais deram ao pequeno Vincent o mesmo nome do seu falecido irmão, na expectativa de suprir qualquer situação que talvez a psicologia explique.

- Imagine, niño Stefano, Van Gogh cada vez que regresó de la escuela, cerca del cementerio, pasó la tumba de su hermano, y vio su nombre escrito en esa lápida!

Stefano ficou a pensar o que se passava entre as orelhas do futuro pintor, seria ele uma farsa de si mesmo ou seria ele uma tentativa de seus pais de reviveram o que já havia passado? O filho que os pais de Van Gogh viam não era aquela criança que estava ao seu lado, sempre quieta e com problemas de relacionamento, viam uma criança imaginária com todas as caracteristicas e expectativas que a cabeça de seus pais podiam conceber.

Por fim, o uruguaio lembrou que na vida todos temos expectativas e vontades que sempre beiram a perfeição, perfeição essa que não existe. Colocamos nos nossos filhos, nos nossos quadros, nas nossas metas, objetivos e anseios que a eles não cabem ou não são possíveis de se atingir.

A estrada era longa e com a companhia das idéias sobre as expectativas que se tem na vida tomando conta da paisagem, nem se deram conta que já haviam deixado a Argentina e o ferry cruzado o Rio de La Plata. Gonzalo estava quase em casa, mas antes queria dar uma passada num lugarzinho...

Na pequena cidade de Carmelo, às margens do Rio de la Plata, encontra-se a Finca Narbona, construída pelo espanhol Juan de Narbona em 1732. No entanto, somente em 1909 sob as mãos do sonhador Vicente Bogliacino que as videiras começaram a ser cultivadas. Os prédios onde se realizam as atividades da vinícola são os mais antigos do Uruguai.

Hoje em dia, a Finca Narbona, produz vinhos Tannat de renome internacional, além de um dos queijos mais conceituados da Cisplatina. Tudo isso aliado a uma atmosfera que transmite todo o esmero e preopcupação que os proprietários tem em querer sempre fazer o melhor.

A surpresa de Stefano de estar em um lugar que congregasse um vinho de excelente qualidade, queijos premiados, com um ambiente único, e uma história de romatismo e paixão na sua produção só foram superadas pela ar orgulhoso de Gonzalo ao mostrar o “quintal” de sua casa ao novo amigo.

Todos nós, a bem da verdade, colocamos em nossos filhos, sejam eles um garotinho ou um empreendimento, toda a expectativa, a esperança e a vontade que sejam os melhores, os primeiros. Olhando as videiras se perdendo ao longe, pensou Stefano que é, de fato, impossível agradar a todos e ser o primeiro por unanimidade, a não ser que você esteja na Finca Narbona, onde a perfeição existe.

Vinicola Carinae e a Utopia do Vinho

Ele chegou de volta por ai esses dias, com um sorriso como há muito não se via. Stefano estava com aquele olhar tinto da época de berçinho. O jumbo da Pan-Am desembarcou na Terra Brasilis com nosso queridão cheio de garrafas e histórias para contar.

Mal chegou em casa, jogou a mochila na velha cama que hoje já não é mais porto seguro de nada, colocou alguns Bordeaux e uns Sauternes na adeguinha do lado da escrivaninha do quarto e parou para pensar no que havia acontecido nos últimos tempos.

Havia ganhado o mundo, vivido seus sonhos e de repente de volta a casa. Deitou no sofá da sala e sorriu; aquele sorriso de dever cumprido, de alma leve, de cabeça fresca. A TV estava no volume baixo, as imagens, de outrora, mostravam um Príncipe Charles jovem, falando sobre conflitos políticos, uma guerra em plena América do Sul, na tal das Malvinas, para o Príncipe: Falklands.

Stefano jamais tinha ouvido falar de tal lugar, certamente conhecia a Argentina e seus arredores, mas as Ilhas Malvinas eram uma novidade. Quantos lugares ainda lhe faltavam conhecer no mundo? Quantos seriam os lugares de que sequer havia ouvido falar? Essas dúvidas foram suficientes para que ele desse um pulo do sofá, deixasse o Príncipe falando sozinho, e com a velha mochila de volta à paleta saiu em busca, em busca... em busca de que?

Estava estranho o nosso desbravador, a mera possibilidade de não conhecer todos os lugares do mundo, todos os vinhos do mundo lhe trazia um desconforto, que embora o fizesse buscar sempre mais, acabava deixando-o por demais angustiado. Nessa ânsia, tomou um ônibus para o Uruguai ou Argentina, nem ele sabia... Tannat ou Malbec, tanto faz, como diz a sra. Venegas, “me despido de ti y me voy”, e se fue rumo ao sul.

Sentado na beira do assento, olhando o pampa pela janela, mal percebeu que um senhor, já grisalho, se sentara ao seu lado... a sra. Venegas tratava de deixá-lo alheio aos ruídos do mundo. E este senhor, tranquilo, se pôs a ler um livro, serenamente respaldado no conforto da experiência.

Low bat...com a voz de Julieta Venegas se esvaindo com o fim da bateria, Stefano, somente agora, notava a presença do seu companheiro de jornada. Após um cordial sorriso, insinuou ser um daqueles gauchos (não gaúcho, mas un gaucho, manja gÁucho), se chamava Gonzalo e lia um livro de um compatriota uruguaio chamado Eduardo Galeano, Las Palabras Andantes.

Stefano sentia que precisava desabafar sobre as questões que estavam a lhe tirar o sono, e como os pampas já estavam se tornando repetitivos, falou sobre seu desejo de conhecer todos os vinhos do mundo e a impossibilidade de, de fato, o fazer. E se era impossível, por que tentar?

Gonzalo, pacientemente, ouviu toda a síntese do turbilhão de dúvidas e contradições emocionais que se passavam na cabeça do jovem e, do alto de sua sabedoria, proferiu lição do livro que o acompanhava:

- Ella, la utopía, está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos allá. Por mucho que camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar.

Em um primeiro momento, Stefano considerou que aquela frase fosse apenas para que ele se desse por satisfeito e deixasse o gaucho voltar para o seu livro. No entanto, como um vinho que precisa descansar para se tornar melhor, aquelas palavras ficaram vagando pela sua cabeça por um tempo e antes de cair no sono, perguntou à Gonzalo:

- Qual o destino final dessa viagem?

- Mendoza. Disse ele.

Viagem longa, viagem necessária...Gonzalo voltava do toalete quando os primeiros passageiros já se preparavam para desembarcar na argentiníssima Mendoza. Stefano, com as ideias frescas e dormidas, se perguntava sobre como fazer essa caminhada, sabendo que o horizonte sempre se afasta, qual a receita para esse sucesso afinal? Gonzalo, em tom de despedida e boa-sorte, disse num sorriso:

- Haga, en la vida, siempre lo mejor que puedas, con la fuerza de papá y la clase de mamá.

Assim se despediram, Gonzalo convidou o novo amigo a visitar seu país e conhecer o famoso reduto do Tannat, mas enquanto não era a hora de ir a República oriental, pensou em provar algum Malbec, afinal estava em Mendoza.

Em um restaurante especializado em cortes daquela região, a fome pedia uma parrillada completa, e para acompanhar, olhando a carta de vinhos descobriu seu companheiro de almoço. Um Vinicola Carinae Reserva Malbec 2007, feito ali mesmo, na grande Mendoza.

Esse grande vinho argentino, elaborado por franceses e sob a supervisão do conhecido Michel Rolland, recebeu 87pts pela avaliação de Robert Parker. O Malbec Reserva 2007 dessa vinícola boutique, atende pelos predicados de cores profundas, complexidade, e envelhecimento de 12 meses em barricas de carvalho francês, certamente digno de tal viagem.

Enquanto os pratos da parrillada iam e vinham, Stefano se pôs a pensar que, no mundo do vinho não há como conhecê-los todos, se percorre uma estrada sem fim, sempre haverá um novo vinho a experimentar ou um velho a se descobrir. A estrada é mesmo sem fim, dá-se um passo a frente e ela teima em se estender um passo ao horizonte; não nos resta nada a não ser continuar caminhando, com a força do papai e a classe da mamãe.

Masi Passo Doble e o Acquired Taste

Eu aprecio a experiência, quem não, né? Sabe, aquelas coisas que vão se coletando com o tempo, que passam como que por mágica pro nosso HD, que muitas vezes, ninguém sabe e ninguém viu de onde vieram e por que estão ali, mas são fundamentais para a compreensão dos fatos.

Quando somos pequenos, não sabemos nada de nada... todo cachorro é mansinho, terra e chocolate granulado são a mesma coisa, os pais sempre foram ótimos alunos e sempre falta mais meia hora pra chegar na praia.

Mas nós crescemos amigos, sim... com 13, 14 anos já somos mais inteligentes e sabidos que qualquer pessoa do mundo. Beber um copo de vinho já é ser um sommelier. Com uns vinte e poucos, a gente começa a notar que de fato, o pouco que sabe ainda não é nem a gorjeta comparado com o que o carinha de cabelos brancos que te carregou no colo conhece.

Mas assim é a vida, uns sabem e outros tem vontade de aprender. E vai se aprendendo com a vida e com o tempo.... O grande mestre Juan Manoel Fangio falando sobre a experiência disse que:

En el principio cuando yo corria, todo lo agarrava fuerte, hasta que me lastimava las manos. Despues, comprendi que com los dedos se manejava mejor. Todo se va haciendo con el tiempo, nadie nascio sabiendo...

Olha, concordo com o amigo Fangio, concordo porque não é só a experiência adquirida, mas sim o caminho percorrido em sua busca. Não é um belo dia que se acorda experiente, sabendo... é um caminho que se percorre. As coisas são adquiridas com o tempo, do kart a Formula-1, do suco de uva ao vinho.

É... com o tempo... se acostumando com os sabores e suas complexidades, é assim que se apresenta o acquired taste. O acquired taste é um conceito que se refere a uma comida ou bebiba que é incomum ser apreciada por alguém que não está acostumada a ela.

Levante a mão quem gostou de sushi desde a primeira vez que o comeu... não vale hot... Quem com menos de 15 anos gosta de café espresso? Quando tu começou a gostar de azeitona? E o vinho tinto, hein?

Vinho tinto não é bem assim também, you gotta “learn to like”.

Eu concordo com isso, estou aprendendo, estou tentando, um passo de cada vez.

A minha escolha da vez não é um mero passo, é sim, um passo doble. Trata-se do Masi Tupungato – Passo Doble – 2006. Um argentino cheio de si, se é que existe algum argentino que não seja.

É uma excelente combinação de Malbec (65%) , Merlot (5%) e Corvina Passificada (30%). Pois é, a Corvina, a essa uvinha italiana é dado o tratamento de uva passa, onde grande parte da água é perdida e concentra bastante açúcar e, quando adicionada ao mosto do malbec e merlot, ocorre uma segunda fermentação, resultando em num vinho fresco e seco, dizem que ideal para acompanhar diversos pratos, especialmente pizzas, dizem eles...

Pois é, pensando sobre isso, acho que ainda estou muito longe, apesar de apreciar bastante, de ter já adquirido ou “aprendido a gostar”, mas isso no fim das contas não é fundamental. Como disse o Fangio, tudo se aprende com o tempo, então, continue treinando que um dia se chega lá.

Jesus Cristo, Pinot Noir e Dúvidas...

Olha, não sei bem ao certo quantas pessoas são, acho que muitas... milhões? Com certeza. Bilhões? Possível. Quem aqui conhece um cara chamado Jesus Cristo? Não precisa ser pessoalmente, pode ser de ter ouvido falar ou que seja amigo de um amigo. Na verdade, não tem muita importância, o que é relevante é que esse cara te seja familiar. Manja? Cabelão... barba grande, sempre daquele jeito meio per fare, uma túnica branca e uma sandália de couro da Richards meio fora de moda. É assim que todo o mundo vê o nosso JC.

O cara apareceu, ficou por uns 30 anos bem tranquilão e lá pelas tantas, virou O CARA... transformava água em vinho, multiplicava pães, ressuscitava e ainda passava aos seus amigos, os apóstolos, toda a sabedoria que ele tinha.

Jotacê era muito casca... Fundou uma Igreja, a Igreja Católica, assim, todo mundo que curtia as idéias dele viraram fãs da Igreja, pautando suas vidas conforme os seus ensinamentos.

Tá! Mas espera um pouco... Como que ele ficou tão popular? Como ele conseguiu convencer a todos que o que ele dizia era mais certo e o que fazia mais adequado? Pô! Ele era filho de Deus! Quem? Deus... o criador, que te deu a vida, o corpo, a alma... dizem, enfim a entidade suprema.

Allright...Mas Deus anda por ai? Não! Jesus nasceu da barriga de alguém? Sim! Como então? Milagre... Simplesmente nasceu... o tal de José ficou ali meio que olhando de canto, pois é amigo, teve um filho e a mulher continuava virgem. Depois dessa, passaram-se 33 anos e ele morreu. E? E? Bamm, ele ressuscitou, tipo voltou a viver... To começando a entender...o cara era filho de Deus, a mãe dele era virgem, não morre... óbvio que eu vou seguir o que ele diz, né?

Mas cá entre nós... meio sci-fi essa história né? Daí uns caras começaram a questionar essa coisa toda, porque ninguém simplesmente renasce, aí é que a coisa começa a esquentar... mas não pode... Não pode o que? Questionar! Por quê? Porque é um dogma! E daí? Daí que dogma não se discute, se aceita e pronto! E se eu não quiser? Tu tá fora! E? Tu vai pro inferno!

Opa, opa, opa... inferno é casca, dizem, acho que foi no trip advisor, que lá é pior que o Carandirú, não quero... entao? Então tu acredita. Beleza, morre e ressuscita, a mãe é virgem, tudo para não ir pro inferno...

O que não faz o medo do desconhecido né? Como a ignorância tem significativa influência no que achamos ou pensamos que achamos, principalmente. Como a realidade pode se tornar malheável se realmente queremos que algo seja verossímil.

Não só com a Igreja, não só com o sobrenatural... essas questões podem se apresentar singelamente em um rótulo, por exemplo, num mero, porém detalhado rótulo de vinho.

Recentemente, uma grande fraude foi descoberta pelas autoridades francesas. Distribuidores franceses estavam exportando para os EUA vinhos de Merlot e de Syrah como sendo de Pinot Noir, uma uva mais nobre e com um valor de mercado bastante superior.

O que aconteceu é que, após o boom em torno do Pinot Noir provocado pelo filme Sideways, em 2004, a demanda por esses vinhos na América aumentou drasticamente. Assim, acabou que não houve produção suficiente. A farsa foi descoberta pois a região de onde os vinhos eram provenientes não tinha condições de produzir em tamanho volume. Nessa fraude, que iniciou em 2006, foram vendidas mais de 13 milhões de garrafas, dentre elas o vinho Red Bicyclette, de propriedade da maior vinícola familiar dos Estados Unidos.


Essa questão é realmente preocupante, mas sabe o que me deixa assustado? Ninguém percebeu a diferença! Foram vendidas todas essas garrafas e ninguém notou nadinha... Uma das maiores vinícolas americanas não conseguiu distinguir a matéria-prima que estava comprando. Esse vinho, o Red Bicyclette Pinot Noir 2006, recebeu 86 pontos na Wine Spectator e nem Pinot Noir era, ou seja, nem os mais conceituados críticos perceberam. Será que de fato sabemos o que estamos tomando? Será que os críticos sabem realmente distinguir em detalhes ou sabendo o que está no rótulo facilita muito o trabalho? O vinho virou esse artigo de luxo que a embalagem é mais importante que o conteúdo?

Eu fico a pensar... será que preferimos não questionar e aceitar algumas coisas como nos são apresentadas para termos conforto e tranquilidade? Seja ela da garantia de um bom vinho, seja por um lugar no paraíso. Eu fico a pensar...

Hoje pode ser um dia especial

A experiência sobre o vinho desse post é uma história do grande amigo, destemperado e enólatra Diego Fabris, mostrando que as coisas boas da vida devem ser aproveitadas ao máximo, sempre. É contigo, Dieguito.

Quando era pequeno, ganhei uma camisa do Milan de presente. Adorava ela, achava a coisa mais linda do mundo e me sentia insuperável com ela. Não emprestava pra ninguém e usava ela só nos aniversários dos amiguinhos mais importantes ou no dias marcantes do colégio.

Guardada a 7 chaves, a mais bela do armário. Assim era ela: a camisa do Van Basten. Estufava o peito e encarava o que viesse. Usar ela já tornava o dia mais especial. Um dia normal ganhava outros ares e incrivelmente, ela trazia alegrias novas pra minha vida.

Até que um dia ela, a tal camisa, foi pra lavar e encolheu. Lágrimas e cara fechada. Um dia que mudou a minha vida. Um divisor de águas na vida de um moleque serelepe. Depois dali, decidi que não ia mais guardar tanto as coisas, que ia usar mais elas numa batida carpe diem. Ganhou? Sai usando, que nem criança na noite de Natal.

Cerca de duas décadas depois, camisas de time já não me causam tanta preocupação. Outra paixão assumiu esse lugar, o vinho. Mas não pense que aquela ferida do passado foi embora. Ela ainda me acompanha. Talvez por isso eu nunca tenha guardado um vinho por tanto tempo na adega.

O paladar vai ficando mais exigente. Os vinhos na estante vão ficando mais caros. A minha carteira reclama. Mas uma coisa persiste, compro um vinho e bebo em um ou dois meses no máximo, independente do naipe dele.

Eis que surgiu na minha vida o Achaval Ferrer Quimera 2003. Esse mendocino tremeu tudo. Já havia bebido uma vez e sabia que se tratava de um vinho marcante, forte. Meu amigo Gornatti comprou um exemplar para a adega da firma, me olhou e disse: “esse aqui a gente vai beber num dia especial”.


E lá estava a garrafa repousando quieta a espera de “um dia especial”. 6 meses se passaram e nada. A gente olhava pra ela todo o dia e virava a cara. E se essa “menina dos olhos” resolvesse perder o valor como a camisa de outrora? Nenhum de nós se perdoaria.

Numa certa quarta-feira, decidimos por fim aquilo. Cansamos de esperar. É hoje! Gornatti preparou a garrafa resfriando-a um pouco naquela noite quente. Como mágica, a garrafa mudou a noite. Alguns minutos depois, recebemos uma ligação do único amigo que faltava àquela mesa. “Vou ser pai”. Incrível. Era sim um dia especial. E seria de qualquer maneira. Pois abrimos a garrafa e a degustamos com a certeza de que se trata de um vinho excelente.

Dizem os entendidos que temos no Quimera um vinho concentrado, com um corte típico bordalês acrescido da grande cepa argentina, o Malbec. A composição? 37% de Malbec, 28% de Merlot, 25% de Cabernet Sauvignon e 10% de Cabernet Franc. Todas estas se encontram e tem tempo de sobra pra se conhecer nos 12 meses que passam juntas nas barricas de carvalho francês.

Eu não sou um especialista. Sou um desses enofriend. Mas digo com certeza absoluta que o Quimera tem a capacidade de tornar qualquer dia especial. Não amanhã, hoje.

Em Busca dos 5 Cálices Sagrados

E o Stefano hein? Conhecem o Stefano?

Desde pequeno sempre foi ele, sabe... um olhinho vivo, preocupado e curioso ao mesmo tempo. Logo viu-se que palhacinhos e bonecos não eram sua praia, seu brinquedo preferido era uma garrafa de champagne baby que ele teimava em tilintar contra as grades do bercinho.

Presidiário de sua cama já tão cedo? Faisquinhas tintas no olhar do pequeno Stefano... Via-se desde piccolo que queria ganhar o mundo, pular da cama para a vida, sair a desbravar os terroirs do mundo.

E assim foi-se indo, aqueles olhinhos vivos, sempre mirando o norte, o topo, tentados a descobrir o melhor, e dessa forma, não poderiam por muito ficar afastados daquela região. Um pequeno pedaço de terra, o cantinho mágico, que por obra do destino manejou-se reunir tudo o que há de mais excelente, premier manja?

E o nosso Stefano se pôs a bailar nessa onda, pensando ele ficou, e então passou o tempo, não muito, mas um bom tempo. Do berço para a cama da gradinha, cama de solteiro, uma cama de casal por uns tempos e depois novamente a cama de solteiro. Rolou um beliche por uns tempos, mas essa é outra história; o que importa é que faltava algo na vida do nosso herói. Faltava chegar ao topo, o lugar onde seus olhos e sua mente estavam fixados, já sabedores do que almejavam. Já havia provado chardonnays , malbecs, carmenères, pinots noir, pinots grigio, nebbiolos, e tudo mais... mas havia algo pendente...

Faltava-lhe o Bordeaux.... mas naquela combinação sagrada de cabernet sauvignon, cabernet franc e merlot (com pitadas de petit verdot em alguns vinhos).

Como ele queria, ah.... seus 5 destinos, 5 paraísos, 5 haréns, 5 oasis venerados por todos aqueles que sabem que uma garrafa de Bordeaux esconde um universo de facetas, sabores e sensações únicas. E lá se foi ele, a interagir com os únicos 5 vinhos tintos a pertencerem ao grupo dos Premier Cru.

Por conta de um pedido do Rei Napoleão III, em 1855, foi elaborado uma classificação para os vinhos produzidos em Bordeaux de acordo com a reputação de seus fabricantes e valor de mercado das garrafas. Assim, criaram-se as suas 05 categorias, da Cinquième Cru, formada pelos vinhos menos conceituados até a Premier Cru, a superior, formada pelos vinhos Chateau Lafite-Rothschild, Chateau Latour, Chateau Haut-Brion, Chateau Margaux e em 1973 foi feito o único adendo nessa lista, com a inclusão do Chateau Mouton-Rothschild.



Um alívio, uma redenção tomou conta de seu espírito vinífero e Stefano sentiu que era hora de buscar novos horizontes... já passara os olhos sobre o que há de mais idolatrado nesse mundo tinto e, seguindo essa ideia pensou que era hora de buscar um pouco de doçura na vida. Seria um Sauterne très special? Ah, esse Stefano......

O Teimoso Mascarello

Meu pai sempre me dizia que, não adiantava reclamar ou ficar olhando sem parar, o churrasco demora para ficar pronto. Por causa dessa demora, dizia meu pai, é que Deus inventou a Castanha de Caju. The lord work in mysterious ways, mas ponto pro papai do céu, eu pensava.

As pessoas teimam em dizer que o tempo passa rápido, até voa, agora diga isso para o pequeno Marcolino, todo encastanhado, olhando a picanha chorar no fogo... a pressa é minha velha amiga, e a perfeição é aquele medalhão de picanha suculento ali no espeto.

E quando finalmente chegava a hora de comer, eu a postos com meu garfinho, minha faquinha, defronte ao meu copo do Jaspion cheio de Guaraná Polar, descia do espeto aquele magnífico, suculento, tenro, saboroso pedaço de..... salsichão.... Cadê a picanha????? Cadê o pedacinho do céu???? Com o canto do olho eu a via e também meu pai rindo de mim, fazendo charminho de perna cruzada, se deliciando com meu sofrimento.

Eu suplicava, a mesa toda pedia para o patriarca-churrasqueiro que atendesse ao meu apelo por uma fatia do paraíso... e ele, retilíneo, gentilmente declinava, e com um ar de quem sabia das coisas; dizia:

- Tudo tem seu tempo, a picanha precisa ser cuidada, a labareda gentil precisa ir aquecendo devagarinho as membranas da carne para que ela fique como merece ficar.

Enfatizava ele, a parte do “MERECE”, eu ficava com a impressão que para ele aquilo era uma arte, não apenas preparar um prato, mas sim, dar àquela matéria-prima o destino que a ela deveria ser dado, o direito de atingir seu potencial, de ser o mais espetacular dos alimentos... Eu não....Eu queria matar minha fome...

Eu tinha pressa e ele tinha prática... prática, ou experiência, como queiram, se adquire com o tempo, devagar como a chama que ao longe queima a carne.

Poucos sabiam disso no Piemonte, ou ainda pior, sabiam mas ignoraram que há certas coisas de que só o tempo é capaz.

O Barolo é um vinho que, para atingir todo o seu potencial, é preciso esperar em torno de 25 anos, um lento processo de amadurecimento e evolução. E os apressados piemonteses, sempre eles, inventaram técnicas e trouxeram equipamentos para acelerar o processo e, por conseqüência, tirar desse vinho o seu fundamental descanso.

Todos menos um italiano, tido como teimoso, retrógrado por alguns, mas fundamentalmente, experiente, o senhor Bartolo Mascarello se negou a praticar essas novas técnicas de preparação. Técnicas essas que iam de encontro a todas as lições que ele havia aprendido na vida, e em especial uma, que seu vinho levava tempo para ficar pronto, muito tempo para que atingisse a condição de Barolo em sua melhor forma. Assim, manteve-se fiel ao antigo modo preparo, a despeito do “progresso” que chegava à Cantina ao lado, no entanto, mais uma vez, a prática venceu.



Hoje em dia, os vinhos Barolo de Bartolo Mascarello são tidos como ícones da indústria vinícola por conta da perseverança em manter a tradição na busca da qualidade acima de tudo, preservando esse “eno-ícone” da nossa pressa. Um brinde ao teimoso Mascarello.