O banco frio e desconfortável do Terminal del Sol em Mendoza era o único divã disponível para Stefano encostar a cabeça e deixar fluir suas idéias. Nos últimos tempos, sua vida estava sendo movida pelo medo de não conhecer tudo, de não experimentar; impulsos esses que, apesar de levarem para frente, estavam cobrando um preço muito alto pelo trajeto.
Nessas horas é bom ter amigos, de longa data ou de ontem, pessoas que tragam um pouco de ar fresco e nos façam olhar em outra direção.
Um agudo barulho de freada de automóvel ecoou pelo átrio do Terminal de Omnibus fazendo Stefano dar um pulo do banco e acordar do transe. Ainda atordoado, vê uma figura bonachona e conhecida sair apressadamente de uma Caminhonete. A sua carona, com atraso, finalmente havia chegado.
- Perdón por la demora, Stefano. Estaba comiendo unos panchos con mostaza y se me hizo tarde.
Gonzalo, dessa vez, não parecia aquele senhor com ar acadêmico que havia lido todos os livros do mundo. Continuava sábio nas palavras, por óbvio, mas sua calça jeans, o cinto escondido pela barriga proeminente e a camisa polo amarela já davam a entender que a viagem seria diferente.
O caminho dos vinhos é infinito e o que vai em direção a Punta del Este é longo, mas termina. Gonzalo ia para casa, descansar; Stefano, para qualquer lugar. E naquele momento, o lugar era a RA-7 com destino a borda do Rio de la Plata.
Não havia espaço para o mochila de Stefano em qualquer lugar da espaçosa caminhonete de Gonzalo. A profusão de telas, rolos e maletas era tanta que a tal backpack e a sacola com uns vinhos comprados em Mendoza foram junto no banco da frente.
- O que são todas essas telas e materiais? Perguntou um Stefano, para variar, intrigado.
- Es el material de una de mis aficiones. Yo hago la más egoísta de todas las cosas en el mundo, obras de arte. Es una terapia para mí pintar cuadros y otras cosas también.
Gonzalo tinha uma cara de que gostava de deixar fluir sua criatividade, demonstrar aos outros seus pensamentos por outras vias. Nessa conversa percebeu-se que guardava profunda admiração por Vincent Van Gogh. Via nele todas as qualidades que admirava na pintura. Fã assumido do holandês, lhe agradava muito Os Comedores de Batata, mas não deixava de salientar que esses poucos gênios trazem consigo uma história igualmente única.
O nosso cortador de orelhas, explicava Gonzalo, estreou na vida com o mesmo nome do irmão que havia morrido um ano antes. Ou seja, os pais deram ao pequeno Vincent o mesmo nome do seu falecido irmão, na expectativa de suprir qualquer situação que talvez a psicologia explique.
- Imagine, niño Stefano, Van Gogh cada vez que regresó de la escuela, cerca del cementerio, pasó la tumba de su hermano, y vio su nombre escrito en esa lápida!
Stefano ficou a pensar o que se passava entre as orelhas do futuro pintor, seria ele uma farsa de si mesmo ou seria ele uma tentativa de seus pais de reviveram o que já havia passado? O filho que os pais de Van Gogh viam não era aquela criança que estava ao seu lado, sempre quieta e com problemas de relacionamento, viam uma criança imaginária com todas as caracteristicas e expectativas que a cabeça de seus pais podiam conceber.
Por fim, o uruguaio lembrou que na vida todos temos expectativas e vontades que sempre beiram a perfeição, perfeição essa que não existe. Colocamos nos nossos filhos, nos nossos quadros, nas nossas metas, objetivos e anseios que a eles não cabem ou não são possíveis de se atingir.
A estrada era longa e com a companhia das idéias sobre as expectativas que se tem na vida tomando conta da paisagem, nem se deram conta que já haviam deixado a Argentina e o ferry cruzado o Rio de La Plata. Gonzalo estava quase em casa, mas antes queria dar uma passada num lugarzinho...
A surpresa de Stefano de estar em um lugar que congregasse um vinho de excelente qualidade, queijos premiados, com um ambiente único, e uma história de romatismo e paixão na sua produção só foram superadas pela ar orgulhoso de Gonzalo ao mostrar o “quintal” de sua casa ao novo amigo.
Todos nós, a bem da verdade, colocamos em nossos filhos, sejam eles um garotinho ou um empreendimento, toda a expectativa, a esperança e a vontade que sejam os melhores, os primeiros. Olhando as videiras se perdendo ao longe, pensou Stefano que é, de fato, impossível agradar a todos e ser o primeiro por unanimidade, a não ser que você esteja na Finca Narbona, onde a perfeição existe.
9 comentários:
Geeeeeente... larga essa vida de advogado agora!!!
Muito lindo...
Belo exame de consciência... pois qtos de nós não pensamos dessa forma... to nesse time valendo!!
super beijo
Muito bom Marcão,como sempre.
ADELANTE!!
Um beijo
M
Muito lindo!!!Emocionante a relação
vinho,espectativa dos pais...Para finalizar V.Gogh...
Fenomeno, sem plavras mesmo para descrever teu texto, faço minhas palavras as palavras da Alemoa, larga o Direito e vira escritor.
Já li 2 vezes, D+.
Parabéns
Um abração
Mano
Ale,
toda a razão pra ti, a parte do advogado não sei, mas o resto com certeza, e obrigado pela ajuda técnica..
bjs
M e Anônimo,
Thanks.
Manolo,
Valeu mestre, Stefano e Gonzalo agradecem.
Abracó
Já tenho até o nome da tua nova firma: Redigire!!!
Bjão Beba
Que máximo. Adorei. Eu diria, plagiando a Ale, larga essa vida de advogado e "salva-vidas" agora! Bjs hasta viernes.
Demais. O texto, a Narbona e a inspiração que dá passar por aqui. Tudo demais.
Tive o prazer de provar um Narbona e tenho outro "descansando" aqui em casa a espera do frio.
Pra esse tannat, Gonzalo e Stefano estão intimados.
Grande abraço
Marco, parabéns pelo blog! Teu texto desce macio, é agradável e persistente. As fotos estão divinas e aquela tábua de frios parece fruto da imaginação!
Abraços
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