Tokaji Aszú e o Elogio Inesperado


Stefano saiu do Uruguai pensando ter evoluído em questões que antes lhe tiravam o sono. Sentiu-se confortável. O que havia aprendido, tanto com as suas próprias reflexões, como com a experiência de Gonzalo, lhe davam estrutura para arriscar novas aventuras. Conhecendo a si mesmo, ao menos um pouco, fica mais fácil de decidir para onde se quer ir ou o que conhecer de outros lugares.

A sua passagem era com destino a Londres, mas Stefano não estava sentindo um desejo de se aventurar por aqueles lados, pelo menos por enquanto. Não que a Inglaterra não lhe agradasse, certamente haveria inúmeras experiências únicas na terra da rainha, apenas não era o momento.

Uma vez desembarcado em Londres, nosso enofriend não encontrou voos disponíveis e que se encaixassem no seu radar. Acabou ficando em uma lista de espera, juntamente com algumas pessoas que se amontoavam na frente do balcão da Cia. aérea.

À sua frente, Stefano avistou um casal já com uma certa idade, que parecia estar embarcando para sua segunda lua-de-mel. Com um vistoso penteado, bem arrumado, ao estilo da vovó, a senhora recebeu em seu rosto rosado um beijo de seu marido que se afastou do balcão por alguns instantes.

Stefano ficou a observar a senhora que fitava seu amado, de terno cinza e um inconfundível Borsalino Fedora, a sumir pelo saguão. Ela se distraiu por alguns momentos com seus documentos, passagens, passaportes, quando de repente é surpreendida pelo gentil toque de uma pétala em seu rosto.

Seu marido havia retornado e trazia uma singela margarida de presente, cheia de sentimentos. A derretida esposa, olha-o como se estivesse ouvindo harpas tocada por anjos, e diz em um sorriso e com um acento britânico inconfundível:

- What a lovely gesture! You know how much I love Daisies.

- I like surprising you…. A flower... A compliment... always when least expected! Responde o marido.

Cena linda, pensou Stefano com seu carrinho com apenas uma mala. Eles devem, certamente, estar fazendo essa viagem para celebrar sua segunda lua-de-mel, apesar de aparentemente ainda estarem vivendo a primeira.

A alegria do casal parece ter trazido sorte para Stefano que consegue um lugar no vôo que o levaria para a Hungria; em algumas horas estaria diante de Budapeste e de uma folha de papel em branco para preencher.

Desembarcando em Budapeste, com a brisa do Rio Danúbio a fazer brincar as folhas do guia turístico do Leste Europeu, Stefano se refugiou numa espécie de taberna frequentado pelos tipos que deviam aterrorizar a turminha do outro lado da cortina de ferro. Naquela tábua de tragos, havia um senhor que protegia uma garrafa com muito mais afinco que pedia proteção a Santo Estevão, santo esse onipresente em Budapeste.

Num inglês diretamente de Moscow, o aparente cosaco disse se tratar de um vinho produzido ali próximo, cerca de 200km de Budapeste. Doce como um discurso de Lenin e macio como a eterna bandeira grafada CCCP dançando ao vento num domingo de agosto na Praça Vermelha, assim era o vinho nas palavras do camarada.

Ahhh a velha camaradagem comunista.... Ao demonstrar interesse no vinho e na história do companheiro, o tal começou a discursar sobre esse fenômeno do leste:

- Aqui, produz-se o vinho mais doce, mais puro e com as melhores uvas de todo o mundo! O ocidente curva-se diante da exuberância do Tokaji, caro menino do novo mundo.

O amigo comunista estava muito entusiasmado em poder apresentar ao forasteiro que seu mundo, apesar de não mais existir, era ainda capaz de surpreender.

Palestrava ele que o Tokaji, produzido na região de Tokaj-Hegyalja pode ser composto de apenas 6 vinhas, Furmint, Hárslevelű, Moscato Gialla, Zéta, Kövérszőlő, Kabar. Esses vinhedos são acometidos do mesmo fungo que ataca as já visitadas vinhas de Sauternes, o botrytis.

O cosaco bebia um Tokaji do tipo Aszú, que de tão emblemático é citado no hino nacional húngaro, e facilmente supera os 14% de graduação alcoolica, talvez daí a sua adoração. Esse vinho era novidade para Stefano, não só pelo vinho em si, mas pela localização onde é produzido e pelo valor que lhe é dado em um lugar de onde não provém qualquer tradição vinícola, certamente uma surpresa.

O único destino disponível, a Hungria, sem qualquer razão que chamasse a atenção do nosso globetrotter, acabou o regalando com a mais incrível e doce surpresa. Da Hungria para Stefano, a compliment when least expected!

Pizzorno e o Mais Egoísta dos Vinhos

Despedidas, às vezes, se arrastam por algum tempo e não se constituem apenas de um aceno, um aperto de mãos, um abraço ou um beijo. Gonzalo e Stefano haviam se despedido mais de uma vez e teimavam em se reencontrar.

Stefano partiria do Uruguai no dia seguinte, e deixando a Finca Narbona para trás, tomaram o rumo de Punta del Este. De Carmelo até Punta há um longo trajeto a ser percorrido. Do lado de fora da caminhonete o visual parecia uma fazenda sem fim, apenas possível separá-las pelas cercas que de tempos em tempos apareciam para sugerir que ali habitavam outras criaturas afora o gado.

Com o bater dos materiais de pintura no porta-malas, Stefano se recordou das palavras de Gonzalo quando ainda estavam em solo portenho, sobre o que pensava acerca das obras de arte.

Na tentativa de aclarar suas idéias ao amigo, Gonzalo disse novamente do seu gosto em produzir arte, em qualquer de suas formas, e que ela é a forma mais egoísta de qualquer expressão artística.

- Para ser arte, el objeto no puede tener ninguna otra habilidad de ser ella misma. No puede haber otra opción que admirar. El arte es la actividad más egoísta del mundo, porque el arte no tiene otro propósito que ella misma.

Uma obra de arte não pode ter qualquer outra razão de ser afora ela mesma. Assim são elas, pensou Stefano, ficam ali a espera de um admirador para que possam cumprir seu destino, e ao mesmo tempo os admiradores ficam à mercê dessa arte, para que se possa, ao menos por um pouco, nos deixar levar por outras emoções e sentidos. Tal como Nietzsche que disse que, “Temos a arte para não morrer da verdade”.

Antes de chegar a Punta del Este, um desvio no caminho para deixar Stefano no Aeroporto Carrasco em Montevideo. Check-in feito e ainda restavam algumas voltas no ponteiro para o avião de Stefano partir sabe-se lá para onde. A dupla se acomodou em um restaurante e pediram, para acompanhar o suculento chorizo, mais um exemplar da uva definitiva do Uruguai, a Tannat.

O garçom não tardou a chegar com um Pizzorno Reserva Tannat 2006, tinto elaborado com as melhores uvas dos vinhedos Pizzorno em Canelones; tem potencial de guarda de 10 anos e é dotado de uma cor rubi, quase púrpura com aroma de ameixas e frutas do campo. Os vinhos de tannat possuem bastante corpo e estrutura e denotam elevada presença de taninos, um vinho marcante que, segundo quem entende, é ideal para acompanhar pratos com molhos fortes, carnes vermelhas, isto é, à altura da força desse vinho.

Enquanto o vinho era aberto, Stefano e Gonzalo pareciam dividir o mesmo pensamento, se o vinho poderia ser considerado uma obra de arte. Ao que deram o primeiro gole decretaram que o vinho não é uma obra de arte, não é o vinho algo para ser admirado, venerado. Para que ele atinga nossos sentidos, o vinho deve ser consumido, para que ele aconteça ele precisa se doar. O vinho, portanto, não é uma obra egoísta, mas um tannat, de fato, é o mais egoísta dos vinhos.

Baron D'Arignac e o Dia para Lembrar

Esses dias eu li que nenhum homem é uma ilha, a não ser que você se chame Fernando de Noronha. Piadinhas de fora, é verdade que todos interagimos e somos influenciados por outras pessoas o tempo todo. O que uma pessoa faz da sua vida pode ter reflexos positivos ou negativos na vida de outras, e elas nem precisam interagir diretamente.

Posso dizer com uma certa segurança que a vida do Ayrton Senna influenciou a minha, e tenho um pouco de dúvida que a minha tenha influenciado a dele. Afora um autógrafo em São Paulo em 1990 ele nunca mais me viu, já eu via ele toda a semana.

Eu adorava ver a Fórmula-1 naquela época, ainda assisto sempre, mas naqueles tempos eu participava das corridas, não era só um gurizinho de pijama tomando Nescau domingo de manhã, era meu herói que estava competindo e eu assistia tendo a certeza de que ele ia fazer todo o possível para ganhar, de tudo e de todos. Ele pregava essa determinação, não importando quem tinha mais condições, quem tinha melhor carro, ou quem conhecia melhor a pista, ele procurava fazer o seu melhor sempre; independentemente das adversidades fazia as coisas ao seu modo.

Depois de ter atingido o ápice, em uma temporada a de 1993, Senna estava com um carro bem inferior aos demais. Teve um dia, era domingo de páscoa de 1993 e eu estava na praia. Me lembro que acordei cedo para comer chocolate e ver o Grande Prêmio da Europa. Meu pai já estava às voltas com o churrasco do dia e eu na frente da televisão esperando começar a corrida.

O tempo não estava dos melhores, na praia, na corrida estava horrível...uma chuva, dizem que foi o pior clima em que uma corrida começou. Luz verde...e foi aí que aconteceu, após a largada, foi dada a volta mais perfeita da história da Fórmula-1. Senna largou em quarto, caiu para quinto, e passou todo mundo até terminar a volta em primeiro lugar. O restante da corrida foi nesse mesmo nível, um espetáculo.

Acabada a corrida, parecia que o Brasil tinha ganho uma copa do mundo na rua da minha casa. Os vizinhos conversando sobre a vitória, falando dos detalhes do brasileirinho, com um carro inferior, superando o clima e os adversários de uma maneira vexatória de tão superior. E eu lá, participando de tudo isso, meu herói tinha vencido. Eu me lembro desse dia.

O Baron D’Arignac é a marca de vinho francês mais consumida no Brasil, está largamente distribuída em lojas especializadas e também em supermercados a preços bastante acessíveis. O tinto, elaborado com uvas de diversos vinicultores de Languedoc Roussillon e produzido pela Les Caves Landira, é um vinho fácil de se beber e acompanha bem carnes e queijos variados, dizem os especialistas. Esse era o vinho preferido do meu avô.

Teve um dia, eu estava começando a entender o que estava fazendo na faculadade de Direito, devia ter uns 20 anos. No final daquela semana, fui para Caxias, meus pais estavam viajando e fui jantar na casa do meu avô, Carlos Cesa. Nós conversamos sobre o que eu estava aprendendo na faculdade e ele me mostrou toda a coleção de livros de Direito Comercial que ele tinha. Depois preparou uns sanduíches de lebre em conserva, com pimentões e a “pomarola do vô” e tomamos uma garrafa de Baron D’ Arignac, aliado a diversos comentários da minha vó para que ele parasse de beber.

Entre uma lebrezinha e outra, perguntei qual vinho era o melhor de se tomar, ao que ele me respondeu que “vinho bom é o vinho que a gente gosta, independe de preços, avaliações, apenas seu mais puro gosto. E isso não vale só para os vinhos, vale para tudo; vá sempre pelo seu gosto”. Eu me lembro desse dia.

Hoje, o Senna e meu avô não estão mais por aí, mas suas experiências e exemplos, seja pela televisão ou pela mesa de jantar, contribuíram de alguma forma para a minha própria vivência. É importante, de tempos em tempos, lembrar desses dias.

Finca Narbona e a busca da Perfeição

Dizem, os professores com seus cardigans, que tudo tem que ser feito devagarinho, um passinho por vez. Stefano havia tido a primeira aula dessa matéria quando estava viajando sem rumo e acabou na Argentina. Afora o excelente Malbec que conheceu, levou importante lição do, agora amigo, Gonzalo sobre como encarar a estrada da vida e do vinho e conviver com a certeza de que ela é, de fato, infinita.

O banco frio e desconfortável do Terminal del Sol em Mendoza era o único divã disponível para Stefano encostar a cabeça e deixar fluir suas idéias. Nos últimos tempos, sua vida estava sendo movida pelo medo de não conhecer tudo, de não experimentar; impulsos esses que, apesar de levarem para frente, estavam cobrando um preço muito alto pelo trajeto.

Nessas horas é bom ter amigos, de longa data ou de ontem, pessoas que tragam um pouco de ar fresco e nos façam olhar em outra direção.

Um agudo barulho de freada de automóvel ecoou pelo átrio do Terminal de Omnibus fazendo Stefano dar um pulo do banco e acordar do transe. Ainda atordoado, vê uma figura bonachona e conhecida sair apressadamente de uma Caminhonete. A sua carona, com atraso, finalmente havia chegado.

- Perdón por la demora, Stefano. Estaba comiendo unos panchos con mostaza y se me hizo tarde.

Gonzalo, dessa vez, não parecia aquele senhor com ar acadêmico que havia lido todos os livros do mundo. Continuava sábio nas palavras, por óbvio, mas sua calça jeans, o cinto escondido pela barriga proeminente e a camisa polo amarela já davam a entender que a viagem seria diferente.

O caminho dos vinhos é infinito e o que vai em direção a Punta del Este é longo, mas termina. Gonzalo ia para casa, descansar; Stefano, para qualquer lugar. E naquele momento, o lugar era a RA-7 com destino a borda do Rio de la Plata.

Não havia espaço para o mochila de Stefano em qualquer lugar da espaçosa caminhonete de Gonzalo. A profusão de telas, rolos e maletas era tanta que a tal backpack e a sacola com uns vinhos comprados em Mendoza foram junto no banco da frente.

- O que são todas essas telas e materiais? Perguntou um Stefano, para variar, intrigado.

- Es el material de una de mis aficiones. Yo hago la más egoísta de todas las cosas en el mundo, obras de arte. Es una terapia para mí pintar cuadros y otras cosas también.

Gonzalo tinha uma cara de que gostava de deixar fluir sua criatividade, demonstrar aos outros seus pensamentos por outras vias. Nessa conversa percebeu-se que guardava profunda admiração por Vincent Van Gogh. Via nele todas as qualidades que admirava na pintura. Fã assumido do holandês, lhe agradava muito Os Comedores de Batata, mas não deixava de salientar que esses poucos gênios trazem consigo uma história igualmente única.

O nosso cortador de orelhas, explicava Gonzalo, estreou na vida com o mesmo nome do irmão que havia morrido um ano antes. Ou seja, os pais deram ao pequeno Vincent o mesmo nome do seu falecido irmão, na expectativa de suprir qualquer situação que talvez a psicologia explique.

- Imagine, niño Stefano, Van Gogh cada vez que regresó de la escuela, cerca del cementerio, pasó la tumba de su hermano, y vio su nombre escrito en esa lápida!

Stefano ficou a pensar o que se passava entre as orelhas do futuro pintor, seria ele uma farsa de si mesmo ou seria ele uma tentativa de seus pais de reviveram o que já havia passado? O filho que os pais de Van Gogh viam não era aquela criança que estava ao seu lado, sempre quieta e com problemas de relacionamento, viam uma criança imaginária com todas as caracteristicas e expectativas que a cabeça de seus pais podiam conceber.

Por fim, o uruguaio lembrou que na vida todos temos expectativas e vontades que sempre beiram a perfeição, perfeição essa que não existe. Colocamos nos nossos filhos, nos nossos quadros, nas nossas metas, objetivos e anseios que a eles não cabem ou não são possíveis de se atingir.

A estrada era longa e com a companhia das idéias sobre as expectativas que se tem na vida tomando conta da paisagem, nem se deram conta que já haviam deixado a Argentina e o ferry cruzado o Rio de La Plata. Gonzalo estava quase em casa, mas antes queria dar uma passada num lugarzinho...

Na pequena cidade de Carmelo, às margens do Rio de la Plata, encontra-se a Finca Narbona, construída pelo espanhol Juan de Narbona em 1732. No entanto, somente em 1909 sob as mãos do sonhador Vicente Bogliacino que as videiras começaram a ser cultivadas. Os prédios onde se realizam as atividades da vinícola são os mais antigos do Uruguai.

Hoje em dia, a Finca Narbona, produz vinhos Tannat de renome internacional, além de um dos queijos mais conceituados da Cisplatina. Tudo isso aliado a uma atmosfera que transmite todo o esmero e preopcupação que os proprietários tem em querer sempre fazer o melhor.

A surpresa de Stefano de estar em um lugar que congregasse um vinho de excelente qualidade, queijos premiados, com um ambiente único, e uma história de romatismo e paixão na sua produção só foram superadas pela ar orgulhoso de Gonzalo ao mostrar o “quintal” de sua casa ao novo amigo.

Todos nós, a bem da verdade, colocamos em nossos filhos, sejam eles um garotinho ou um empreendimento, toda a expectativa, a esperança e a vontade que sejam os melhores, os primeiros. Olhando as videiras se perdendo ao longe, pensou Stefano que é, de fato, impossível agradar a todos e ser o primeiro por unanimidade, a não ser que você esteja na Finca Narbona, onde a perfeição existe.

Villa Francioni Rosé e as Mudanças do Verão


Tudo sempre muda. Conhecem o Heráclito de Éfeso? Lá dos Éfesos, das bandas da Grécia antiga, Jônia... O papai da Dialética, como dizem os senhores de pullover. Olha, esse cara me faz pensar...Ele disse que tudo flui, tudo se move, exceto o próprio movimento. Na idéia central dele, as mudanças que todas as coisas sofrem e se proporcionam é uma eterna escalada entre contrários.

Assim, as coisas quentes esfriam, coisas frias esquentam, o que é seco fica molhado e o que é molhado fica seco. Pra esse carinha, o tal Heráclito, a realidade nunca é uma escolha, tipo é quente ou é frio. Para ele o quente e o frio são partes dessa mesma realidade. A realidade se apresenta na mudança, essa troca, essa guerrinha entre o quente e o frio é que marca a realidade, um não pode existir sem o outro. Tipo, eu não posso saber o que é ser saudável, se eu nunca fiquei doente.

O que importa dessa lição é que tudo flui, tudo muda, tudo se aprende. Desse mesmo maestro que saiu aquela máxima que todo mundo já ouviu “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio...”. Tudo sempre muda...

Ainda mais no verão...Tudo sempre muda no verão... Pode ter certeza que um pouquinho antes do Natal, tu acha muitas coisas, tem várias verdades, aquilo é porque é daquele jeito.... mas te garanto my friend, até o Carnaval tu já mudou de opinião, já passou muita água do mar debaixo da tua ponte...

Às vezes, nem se sabe o que mudou, mas o sentimento já não é mais aquele, só se sente que o que era já não é mais. É engraçado porque de agosto a outubro as coisas não parecem mudar tanto assim, né? Elas vão indo, na água morna, mas acontecer, com letra maiúscula, é mais complicado.

Porque o verão é assim, uma época de ver outras coisas, mostrar novidades, sair da zona de conforto e deixar acontecer. Ir além do dia-a-dia da cidade e seu trio infalível e inconfundível de calça, camisa e sapato. No verão, não existe what If, na maioria das vezes só se tem uma oportunidade, aquele dia de mar perfeito, seja cheio de ondas ou seja sem aquela cor de chocolatão. Quantas vezes já não vieram te dizer que naquele dia tu tinhas perdido um dia fantástico na praia, o melhor mar do verão?

Eu me lembro dos meus verões em Torres, daquela época que se ia para a praia depois do Natal e quando terminava o Carnaval eu ainda estava lá, não me lembrava nem como se segurava uma caneta, mas sabia todos os esconderijos possíveis na vizinhança para fugir no “Polícia e Ladrão”. Não tinha, lá no início dos anos 90, internet, Enofriend, Orkut, MSN, celular, e telefone fixo em casa de praia não era lá muito comum, ou seja, se perdia totalmente o contato com os amigos da cidade que iam para outras praias.

Pois é, no verão o cenário muda e são, na maioria das vezes, acrescentados novos personagens à nossa história. Nesse último verão fiquei nu, me despi... perdi um preconceito... Tinha um pé atrás com vinhos rosés nacionais e nem queria saber de nada.

Nesse verão mudei de idéia, e não foi a contragosto, foi bem por querer mesmo... Inclui na minha lista de bons vinhos disponíveis facilmente por aqui, o Villa Francioni Rosé 2008.

Esse rosado de uma cor salmão excepcional, é produzido com as uvas Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Merlot, Malbec, Syrah, Sangiovese, Pinot Noir e Petit Verdot. No meu modesto paladar, ele ainda está atrás dos rosés franceses que já provei (esse aqui e esse outro), mas certamente é o melhor rosé nacional que encontrei até agora.

Os verões são mesmo capazes dessas mudanças, que no fim das contas sempre vem para nos mostrar outra realidade, ou como ensinou Heráclito: a mesma realidade, apenas uma outra alternativa.

Mondovino – Entre o Moderno e o Romântico

Dia desses, aproveitando uma folguinha a beira-mar, me programei para assistir ao tão comentado documentário Mondovino, produzido em 2004 por Jonathan Nossiter.

Essa grande obra conta com a participação de grandes ícones da enologia moderna como Robert Mondavi (mega produtor de Napa Valley), Michel Rolland (um dos mais procurados consultores de vinho do mundo), Robert Parker (maior crítico de vinhos do mundo) e Michael Broadbent (responsável pela área de vinhos na casa de leilão inglesa Christie’s) falando sobre os caminhos que o vinho está percorrendo para se tornar um produto adaptado ao mercado mundial de hoje.

Do outro lado, é apresentado o lado romântico, a belle époque da produção vinícola. O jeito tradicional de se produzir o vinho é trazido nos depoimentos de nobres produtores, notadamente franceses e italianos.

A linha mestra do documentário gira em torno do possível círculo vicioso que está se formando em torno da avaliação de vinhos e a uniformização do sabor. Essa uniformização é representada pelas técnicas aplicadas e sugeridas por consultores que parecem, em tese, agradar aos críticos que, por conta disso, atribuem boas nota a esses vinhos, fazendo com que “tornem-se” melhores aos olhos dos consumidores, o tal círculo vicioso.

É mostrado o contraponto a essa questão, trazendo a história de diversos produtores tradicionais, que preparam seus vinhos procurando extrair o melhor do terroir e deixando o vinho com os sabores que ele possui pela sua natureza e não os manipulados pelas técnicas humanas, tal como a micro-oxigenação.

Os produtores modernos querem agradar a maior parcela de mercado possível para garantir maior receita e expandir seu negócio, o que é muito justo; e de outra sorte os produtores tradicionais querem manter a máxima de Galileu que disse que “Wine is sunlight held together by water”, sem mais nem menos.

Certamente é uma produção que merece ser vista, um duelo entre o moderno e o romântico, que influencia diretamente o nosso paladar. Saber quem está certo é complicado, o mais provável é que ambos tenham sua parcela de razão, é uma decisão difícil, mas eu sempre fui um cara romântico.

Vinicola Carinae e a Utopia do Vinho

Ele chegou de volta por ai esses dias, com um sorriso como há muito não se via. Stefano estava com aquele olhar tinto da época de berçinho. O jumbo da Pan-Am desembarcou na Terra Brasilis com nosso queridão cheio de garrafas e histórias para contar.

Mal chegou em casa, jogou a mochila na velha cama que hoje já não é mais porto seguro de nada, colocou alguns Bordeaux e uns Sauternes na adeguinha do lado da escrivaninha do quarto e parou para pensar no que havia acontecido nos últimos tempos.

Havia ganhado o mundo, vivido seus sonhos e de repente de volta a casa. Deitou no sofá da sala e sorriu; aquele sorriso de dever cumprido, de alma leve, de cabeça fresca. A TV estava no volume baixo, as imagens, de outrora, mostravam um Príncipe Charles jovem, falando sobre conflitos políticos, uma guerra em plena América do Sul, na tal das Malvinas, para o Príncipe: Falklands.

Stefano jamais tinha ouvido falar de tal lugar, certamente conhecia a Argentina e seus arredores, mas as Ilhas Malvinas eram uma novidade. Quantos lugares ainda lhe faltavam conhecer no mundo? Quantos seriam os lugares de que sequer havia ouvido falar? Essas dúvidas foram suficientes para que ele desse um pulo do sofá, deixasse o Príncipe falando sozinho, e com a velha mochila de volta à paleta saiu em busca, em busca... em busca de que?

Estava estranho o nosso desbravador, a mera possibilidade de não conhecer todos os lugares do mundo, todos os vinhos do mundo lhe trazia um desconforto, que embora o fizesse buscar sempre mais, acabava deixando-o por demais angustiado. Nessa ânsia, tomou um ônibus para o Uruguai ou Argentina, nem ele sabia... Tannat ou Malbec, tanto faz, como diz a sra. Venegas, “me despido de ti y me voy”, e se fue rumo ao sul.

Sentado na beira do assento, olhando o pampa pela janela, mal percebeu que um senhor, já grisalho, se sentara ao seu lado... a sra. Venegas tratava de deixá-lo alheio aos ruídos do mundo. E este senhor, tranquilo, se pôs a ler um livro, serenamente respaldado no conforto da experiência.

Low bat...com a voz de Julieta Venegas se esvaindo com o fim da bateria, Stefano, somente agora, notava a presença do seu companheiro de jornada. Após um cordial sorriso, insinuou ser um daqueles gauchos (não gaúcho, mas un gaucho, manja gÁucho), se chamava Gonzalo e lia um livro de um compatriota uruguaio chamado Eduardo Galeano, Las Palabras Andantes.

Stefano sentia que precisava desabafar sobre as questões que estavam a lhe tirar o sono, e como os pampas já estavam se tornando repetitivos, falou sobre seu desejo de conhecer todos os vinhos do mundo e a impossibilidade de, de fato, o fazer. E se era impossível, por que tentar?

Gonzalo, pacientemente, ouviu toda a síntese do turbilhão de dúvidas e contradições emocionais que se passavam na cabeça do jovem e, do alto de sua sabedoria, proferiu lição do livro que o acompanhava:

- Ella, la utopía, está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos allá. Por mucho que camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar.

Em um primeiro momento, Stefano considerou que aquela frase fosse apenas para que ele se desse por satisfeito e deixasse o gaucho voltar para o seu livro. No entanto, como um vinho que precisa descansar para se tornar melhor, aquelas palavras ficaram vagando pela sua cabeça por um tempo e antes de cair no sono, perguntou à Gonzalo:

- Qual o destino final dessa viagem?

- Mendoza. Disse ele.

Viagem longa, viagem necessária...Gonzalo voltava do toalete quando os primeiros passageiros já se preparavam para desembarcar na argentiníssima Mendoza. Stefano, com as ideias frescas e dormidas, se perguntava sobre como fazer essa caminhada, sabendo que o horizonte sempre se afasta, qual a receita para esse sucesso afinal? Gonzalo, em tom de despedida e boa-sorte, disse num sorriso:

- Haga, en la vida, siempre lo mejor que puedas, con la fuerza de papá y la clase de mamá.

Assim se despediram, Gonzalo convidou o novo amigo a visitar seu país e conhecer o famoso reduto do Tannat, mas enquanto não era a hora de ir a República oriental, pensou em provar algum Malbec, afinal estava em Mendoza.

Em um restaurante especializado em cortes daquela região, a fome pedia uma parrillada completa, e para acompanhar, olhando a carta de vinhos descobriu seu companheiro de almoço. Um Vinicola Carinae Reserva Malbec 2007, feito ali mesmo, na grande Mendoza.

Esse grande vinho argentino, elaborado por franceses e sob a supervisão do conhecido Michel Rolland, recebeu 87pts pela avaliação de Robert Parker. O Malbec Reserva 2007 dessa vinícola boutique, atende pelos predicados de cores profundas, complexidade, e envelhecimento de 12 meses em barricas de carvalho francês, certamente digno de tal viagem.

Enquanto os pratos da parrillada iam e vinham, Stefano se pôs a pensar que, no mundo do vinho não há como conhecê-los todos, se percorre uma estrada sem fim, sempre haverá um novo vinho a experimentar ou um velho a se descobrir. A estrada é mesmo sem fim, dá-se um passo a frente e ela teima em se estender um passo ao horizonte; não nos resta nada a não ser continuar caminhando, com a força do papai e a classe da mamãe.