Taittinger Prélude e o Toque Real

Sonhos são sonhos. Quando se têm, por mais que se queira fugir, há sempre uma forcinha a virar a cabeça para o lugar que o teimoso e vencedor inconsciente deseja. Stefano estava indo e vindo há um tempo e desde quando se pôs a ouvir Dimitri declarar as glórias da França e seu grande general, estava certo que lá era seu lugar, pelo menos por um tempo.

A viagem de Budapeste para a França, apesar da longa jornada atravessando Áustria e Alemanha, traz do outro lado da janela do trem um passatempo inesquecível. Assim que cruzou a fronteira saindo da Hungria, os alpes austríacos começaram a dar o ar da sua graça. Lindas paisagens cruzavam o caminho de Stefano, que na ausência de companhia, deixava as imagens tomarem toda a sua atenção.

Cruzando os alpes austríacos e entrando pela Alemanha por Salzburg, Stefano não tardou a cruzar por lugares como Garmisch-Partenkirschen que lembraram a sua paixão esquecida pelo ski e também como o frio e a neve combinam com jantar, lareira e vinho.

Finalmente em solo francês, Stefano anotava em seu Moleskine as grandes possibilidades que podiam aparecer se fizesse uma parada pela Borgonha, berço do Chambertin de Napoleão. O trem, no entanto, seguia firme sua marcha borbulhante rumo à Reims.

Depois de ouvir do amigo cossaco sobre Napoleão e sua eterna busca pela realeza, seu destino não parecia ser outro senão aquele que produzia a bebida dos reis, o símbolo da celebração e o merecido refresco da vitória, o champagne.

Quando o trem cruzava Epernay, Stefano estava parecendo um cachorro para fora do vidro, queria experimentar, sentir, fazer parte dessa história de tradição e elegância. Faltava pouco para que o chão da gare de Reims chegasse ao seu encontro.

Pronto, pronto... Ali ele estava...Se a história tivesse peso, várias toneladas estariam sobre seus ombros naquele momento. Stefano estava em Reims, caminhando pela Avenue du Champagne, como um aluno na classe, esperando que história lhe fosse apresentada.

Costurando o centro de Reims, próximo a Avenue Louis Roederer, Stefano encontra um bistrot com uma vista que deve ter de alguma forma servido de inspiração para uma senhora. O Bistrot ficava do outro lado da rua dos grandiosos jardins do Hôtel Ponsardin, lugar que durante muitos anos serviu de morada para uma jovem, filha de um grande comerciante de tecidos chamado Nicholas Ponsardin, e cujo casamento com o senhor François Clicquot viria a durar muito pouco, e atendia pela graça de Barbe-Nicole.

Olhando uma janela que poderia ser de seu quarto, Stefano se sentou em uma mesa na calçada. Apesar do frio, havia uma outra mesa ocupada ao seu lado.

Continuando a mirar a mesma vista que uma vez contemplou a dama do champagne, Stefano se viu pensando sobre o quanto a vontade de uma pessoa pode revolucionar todo o mundo, o quanto a vontade em querer fazer o melhor pode fazer o mundo se curvar diante de uma garrafa.

Na outra mesa ocupada na calçada, uma elegante senhora bebia calmamente uma flûte de um néctar claro e borbulhante. Com seus trajes clássicos, uma echarpe esvoaçante por conta da brisa do inverno, tinha seu rosto parcialmente coberto por um monárquico chapéu, que a fazia se destacar dentre todos os outros passageiros da Avenue.

Não havia como não notá-la, sua presença até mesmo preenchia as mesas desocupadas e fazia com que a calçada ficasse mais estreita... uma duquesa? Herdeira de uma maison? Stefano ficou curioso...

Quando lhe foi oferecido o Menu do bistrot, Stefano não tardou a perguntar o que havia de diferente naquela senhora, que aura ela trazia que a deixava daquela maneira? A jovem francesa, num inglês carregado, disse:

- As Madame de Pompadour used to say, “Champagne is the only wine that leaves a woman beautiful after drinking it. It gives brilliance to the eyes without flushing the cheeks”.

Stefano, na sua ânsia por querer entender tudo e todos, se aproximou da senhora e, na tentativa de estabelecer qualquer contato com essa entidade que exprimia em todos os detalhes a quem uma garrafa de blanc de noirs sonhava em ser servida, indagou o que bebia.

A senhora bebia um Taittinger Prélude Grand Crus, de um aspecto brilhante, uma cor amarelada e perfeita borbulhas que tardavam a se dissipar. Esse champagne produzida na proporção de 50% Chardonnay e Pinot Noir totalmente provenientes da região de Champagne é feito totalmente de cuvée, ou seja, da primeira prensagem, mais leve, de onde os produtores acreditam se extrair o melhor produto.

Realmente, “realezamente”, a senhora sabia o que degustava e sabia se comportar como tal e em uma relação superior com sua taça, olhando o horizonte e sentindo-se flanar, disse para o súdito na forma de Stefano:

- I drink a flute of champagne every day. At least for an hour I feel like the Queen of France.

Gevrey Chambertin e o Destino de Napoleão

Uma agulha no palheiro, essa era a chance de encontrar um russo apreciador de vinhos. Claro que a vodka ainda era sua preferida, a paixão de todo bolchevique, mas o vinho ao que pareceu guardava estreita ligação com Dimitri.

Pois Dimitri, essa era a graça desse cosaco de bochechas rosadas como sua bandeira, era um grande apreciador de tintos, brancos, rosés, colheitas tardias, enfim, a uva fermentada em todas as suas formas.

Como já havia se percebido, Dimitri flertava constantemente com a política e guardava profunda admiração pelas biografias dos grandes líderes de seu país e mais tarde ficaria claro que seu apreço era endereçado a todos os líderes, independente de suas nacionalidades.

Costeando o Rio Danúbio, Stefano e Dimitri, saem das ruas principais de Budapeste, ainda observados pelo Castelo de Buda e entram no wine bar onde o russo havia reservado uma mesa. Apesar do inverno, o lugar estava bastante cheio. Duas pesadas portas de vidro tratavam de deixar o frio lá fora enquanto uma bem localizada lareira deixava o grande ambiente interno na temperatura ideal. Um grande balcão servia de morada para diversas garrafas onde, segundo constava, se preparavam premiados drinks de autor e alguns solitários tratavam de esquecer seus problemas.

Stefano estava envolto pela atmosfera do lugar e voltou a si com o chamado de Dimitri para sentar-se a mesa com duas mulheres que ali estavam. Eram duas alunas de Dimitri, que era professor de história na Universidade de Budapeste. As duas estavam a falar sobre a última aula, que trazia a biografia do maior general francês de todos os tempos. Dimitri, aparentemente alheio aos comentários das garotas, ordenou um vinho ao garçom, que logo se afastou.

Continuando com a conversa Dimitri, novamente embuído do espírito um tanto nostálgico e outro tanto poético, versava sobre os grande feitos de Napoleão Bonaparte. Dizia o professor que amava a Russia acima de tudo, mas naquele dia Napoleão havia feito o leste se curvar, e por consequencia também ele se curvara.

A Inglaterra, não satisfeita com a frágil paz que havia se instalado entre ela e a França, começa a costurar alianças para se levantar contra o império francês, e nessa coalização entram o império austríaco e russo, contava Dimitri. Armou-se uma revolta e após um breve período estavam todos os envolvidos em um clima de guerra, um exército marchando em direção ao outro.

Napoleão, grande estrategista que era, antecipou movimentos, definiu posições e usando táticas certeiras aniquilou as tropas inglesas e seus aliados austríacos e russos. Tudo isso durante 9 longas horas do dia 2 de dezembro de 1806. Essa batalha, a história tratou de chamá-la de Batalha de Austerlitz ou a Batalha dos 3 imperadores, e foi a vitória mais emblemática de Napoleão.

Dimitri dá um salto da cadeira, olha para Stefano e com a mão por dentro do próprio paleto, tal qual Napoleão, brada como um Imperador:

- And after the triumphant victory Napoleon said to his loyal soldiers: All you need to say is ‘I was at the Battle of Austerlitz‘ and everyone who hears will nod their head and think, ‘There goes a brave man!

Napoleão sabia, àquela época, que havia chegado ao topo, estava no apse, e tinha consciência de que lá estava. Costumava falar que fazia a sua própria sorte e quando achava o que lhe era melhor, aproveitava e saboreava o gosto da vitória. Esse era o seu destino, o melhor, a glória.

Nesse momento Dimitri é interrompido pelo garçom, que lhe oferece a rolha, questionando se poderia servi-lo. Tratava-se de um Gevrey-Chambertin. Um borgonha do Domaine Armand Rousseau. Chambertin, é uma sub-região incrustada no coração da Borgonha, onde se produz em uma boa safra vinhos inigualáveis, robustos e com um excelente potencial de guarda, afora seu aspecto militar, forte escuro e pesado.

Stefano, com todo esse ode à França, já estava tramando seu próximo, novo-velho destino, quando o cossaco provou que ouvira a conversa desde o ínicio.

Dizia ele que um Chambertin era o vinho preferido de Napoleão. Depois de provar esse vinho não se satisfez com nenhum outro, já havia encontrado sua glória, havia encontrado seu destino. Napoleão sempre soube quando havia atingido o topo.

Tokaji Aszú e o Elogio Inesperado


Stefano saiu do Uruguai pensando ter evoluído em questões que antes lhe tiravam o sono. Sentiu-se confortável. O que havia aprendido, tanto com as suas próprias reflexões, como com a experiência de Gonzalo, lhe davam estrutura para arriscar novas aventuras. Conhecendo a si mesmo, ao menos um pouco, fica mais fácil de decidir para onde se quer ir ou o que conhecer de outros lugares.

A sua passagem era com destino a Londres, mas Stefano não estava sentindo um desejo de se aventurar por aqueles lados, pelo menos por enquanto. Não que a Inglaterra não lhe agradasse, certamente haveria inúmeras experiências únicas na terra da rainha, apenas não era o momento.

Uma vez desembarcado em Londres, nosso enofriend não encontrou voos disponíveis e que se encaixassem no seu radar. Acabou ficando em uma lista de espera, juntamente com algumas pessoas que se amontoavam na frente do balcão da Cia. aérea.

À sua frente, Stefano avistou um casal já com uma certa idade, que parecia estar embarcando para sua segunda lua-de-mel. Com um vistoso penteado, bem arrumado, ao estilo da vovó, a senhora recebeu em seu rosto rosado um beijo de seu marido que se afastou do balcão por alguns instantes.

Stefano ficou a observar a senhora que fitava seu amado, de terno cinza e um inconfundível Borsalino Fedora, a sumir pelo saguão. Ela se distraiu por alguns momentos com seus documentos, passagens, passaportes, quando de repente é surpreendida pelo gentil toque de uma pétala em seu rosto.

Seu marido havia retornado e trazia uma singela margarida de presente, cheia de sentimentos. A derretida esposa, olha-o como se estivesse ouvindo harpas tocada por anjos, e diz em um sorriso e com um acento britânico inconfundível:

- What a lovely gesture! You know how much I love Daisies.

- I like surprising you…. A flower... A compliment... always when least expected! Responde o marido.

Cena linda, pensou Stefano com seu carrinho com apenas uma mala. Eles devem, certamente, estar fazendo essa viagem para celebrar sua segunda lua-de-mel, apesar de aparentemente ainda estarem vivendo a primeira.

A alegria do casal parece ter trazido sorte para Stefano que consegue um lugar no vôo que o levaria para a Hungria; em algumas horas estaria diante de Budapeste e de uma folha de papel em branco para preencher.

Desembarcando em Budapeste, com a brisa do Rio Danúbio a fazer brincar as folhas do guia turístico do Leste Europeu, Stefano se refugiou numa espécie de taberna frequentado pelos tipos que deviam aterrorizar a turminha do outro lado da cortina de ferro. Naquela tábua de tragos, havia um senhor que protegia uma garrafa com muito mais afinco que pedia proteção a Santo Estevão, santo esse onipresente em Budapeste.

Num inglês diretamente de Moscow, o aparente cosaco disse se tratar de um vinho produzido ali próximo, cerca de 200km de Budapeste. Doce como um discurso de Lenin e macio como a eterna bandeira grafada CCCP dançando ao vento num domingo de agosto na Praça Vermelha, assim era o vinho nas palavras do camarada.

Ahhh a velha camaradagem comunista.... Ao demonstrar interesse no vinho e na história do companheiro, o tal começou a discursar sobre esse fenômeno do leste:

- Aqui, produz-se o vinho mais doce, mais puro e com as melhores uvas de todo o mundo! O ocidente curva-se diante da exuberância do Tokaji, caro menino do novo mundo.

O amigo comunista estava muito entusiasmado em poder apresentar ao forasteiro que seu mundo, apesar de não mais existir, era ainda capaz de surpreender.

Palestrava ele que o Tokaji, produzido na região de Tokaj-Hegyalja pode ser composto de apenas 6 vinhas, Furmint, Hárslevelű, Moscato Gialla, Zéta, Kövérszőlő, Kabar. Esses vinhedos são acometidos do mesmo fungo que ataca as já visitadas vinhas de Sauternes, o botrytis.

O cosaco bebia um Tokaji do tipo Aszú, que de tão emblemático é citado no hino nacional húngaro, e facilmente supera os 14% de graduação alcoolica, talvez daí a sua adoração. Esse vinho era novidade para Stefano, não só pelo vinho em si, mas pela localização onde é produzido e pelo valor que lhe é dado em um lugar de onde não provém qualquer tradição vinícola, certamente uma surpresa.

O único destino disponível, a Hungria, sem qualquer razão que chamasse a atenção do nosso globetrotter, acabou o regalando com a mais incrível e doce surpresa. Da Hungria para Stefano, a compliment when least expected!

Pizzorno e o Mais Egoísta dos Vinhos

Despedidas, às vezes, se arrastam por algum tempo e não se constituem apenas de um aceno, um aperto de mãos, um abraço ou um beijo. Gonzalo e Stefano haviam se despedido mais de uma vez e teimavam em se reencontrar.

Stefano partiria do Uruguai no dia seguinte, e deixando a Finca Narbona para trás, tomaram o rumo de Punta del Este. De Carmelo até Punta há um longo trajeto a ser percorrido. Do lado de fora da caminhonete o visual parecia uma fazenda sem fim, apenas possível separá-las pelas cercas que de tempos em tempos apareciam para sugerir que ali habitavam outras criaturas afora o gado.

Com o bater dos materiais de pintura no porta-malas, Stefano se recordou das palavras de Gonzalo quando ainda estavam em solo portenho, sobre o que pensava acerca das obras de arte.

Na tentativa de aclarar suas idéias ao amigo, Gonzalo disse novamente do seu gosto em produzir arte, em qualquer de suas formas, e que ela é a forma mais egoísta de qualquer expressão artística.

- Para ser arte, el objeto no puede tener ninguna otra habilidad de ser ella misma. No puede haber otra opción que admirar. El arte es la actividad más egoísta del mundo, porque el arte no tiene otro propósito que ella misma.

Uma obra de arte não pode ter qualquer outra razão de ser afora ela mesma. Assim são elas, pensou Stefano, ficam ali a espera de um admirador para que possam cumprir seu destino, e ao mesmo tempo os admiradores ficam à mercê dessa arte, para que se possa, ao menos por um pouco, nos deixar levar por outras emoções e sentidos. Tal como Nietzsche que disse que, “Temos a arte para não morrer da verdade”.

Antes de chegar a Punta del Este, um desvio no caminho para deixar Stefano no Aeroporto Carrasco em Montevideo. Check-in feito e ainda restavam algumas voltas no ponteiro para o avião de Stefano partir sabe-se lá para onde. A dupla se acomodou em um restaurante e pediram, para acompanhar o suculento chorizo, mais um exemplar da uva definitiva do Uruguai, a Tannat.

O garçom não tardou a chegar com um Pizzorno Reserva Tannat 2006, tinto elaborado com as melhores uvas dos vinhedos Pizzorno em Canelones; tem potencial de guarda de 10 anos e é dotado de uma cor rubi, quase púrpura com aroma de ameixas e frutas do campo. Os vinhos de tannat possuem bastante corpo e estrutura e denotam elevada presença de taninos, um vinho marcante que, segundo quem entende, é ideal para acompanhar pratos com molhos fortes, carnes vermelhas, isto é, à altura da força desse vinho.

Enquanto o vinho era aberto, Stefano e Gonzalo pareciam dividir o mesmo pensamento, se o vinho poderia ser considerado uma obra de arte. Ao que deram o primeiro gole decretaram que o vinho não é uma obra de arte, não é o vinho algo para ser admirado, venerado. Para que ele atinga nossos sentidos, o vinho deve ser consumido, para que ele aconteça ele precisa se doar. O vinho, portanto, não é uma obra egoísta, mas um tannat, de fato, é o mais egoísta dos vinhos.