O Jogador de Sinuca e o Julgamento de Paris

O dia nasceu cinza, combinando com a rotina e os anseios de Charlie “dois dedos” Gomez. Charlie, um atleta mediano do feltro verde vivia sua vida um dia por vez, de bola 8 em bola 8 e já havia muito que tinha posto um sorriso no rosto de alguém por conta de um trick shot, tanto na sinuca como na vida. Sua vida era como o dia, um cinza sem fim trancado na mesmice de um longo banho-maria.

Charlie estava na época em que normalmente as pessoas dão uma guinada na vida, quando o jogo começa a se definir. Mas não era o caso do nosso “dois dedos”, apelido esse ganho nos torneios de billiard da ala norte de seu condado quando ainda não ostentava a calvície e seus cabelos lembravam um lindo por do sol alaranjado; agora, o que restava, se mostrava um dia londrino, antecipadamente grisalhos.

10. Essa não era a nota de Charlie pelas suas apresentações nas mesas do mundo e sim a média de suas colocações nos campeonatos que disputava, sempre por volta do décimo lugar. Suas partidas, apesar do resultado morno, sempre se mostravam dramáticas, Charlie perdia suas partidas não pela superioridade técnica de seus adversários, mas pelo fato de que suas tacadas deixavam a bola a poucos centímetros de onde desejava; não era um mau jogador, faltava-lhe muito pouco para conseguir o objetivo, sempre alguns centímetros, dois dedos...

Durante o campeonato aberto do condado daquele ano, Charlie encerrou sua participação no sétimo lugar. Após a entrega das taças, bebeu algumas doses de Sherry com seus amigos de taco, vestiu seu surrado sobretudo e despediu-se, deixando-se levar pelo vento do inverno.

Pouco se soube, ou melhor, nada se soube de Charlie por um tempo, não aparecia para os jogos de terça-feira, nem para assistir aos jogos de cricket e conferir suas apostas. Assim se passaram alguns meses.

Às vésperas do grande campeonato anual, Charlie reapareceu no clube. Tudo como antes, a não ser por um detalhe. Uma grande aliança dourada no dedo anelar da mão esquerda. Não era um simples anel, ostentava ele uma grande coroa dourada que quase lhe ocupava a falange inteira. Dois Dedos havia se casado, dizia que encontrara a felicidade numa breve viagem de férias, que por questões do coração havia se estendido e se materializado em seu dedo. Afora isso, lembrava o velho Charlie.

No dia seguinte, ainda cedo para os padrões da época, Charlie chegou para se preparar para sua primeira partida no campeonato. Sua partida se desenrolou da mesma maneira como sempre se percebia e se esperava do velho Charlie Dois Dedos, no entanto aos poucos se notou um pequeno-grande detalhe, os míseros dois dedos não faltavam mais nas tacadas de Charlie e seu jogo estava primoroso.

Os amigos não entendiam o que acontecera com o jogador mediano mais consistente que já haviam conhecido. Uns diziam que o amor lhe dera a confiança necessária para superar suas dificuldades e segurança para arriscar suas melhores tacadas. Outros entendiam que a grossa aliança tratou de equilibrar sua mão na mesa e corrigiu sua linha de tacada.

O que de fato ocorreu, não se sabe. Sabe-se apenas que a partir desse dia, todos conheceram e admiraram Charlie “Dedo de Ouro” Gomez.

Em 24 de maio de 1976 foi realizado o Paris Wine Tasting, organizado pelo inglês Steven Spurrier. Tal evento tratava-se de uma degustação às cegas de diversos vinhos tintos e brancos franceses e californianos.

A competição contou com a presença de alguns dos maiores nomes da enologia daquela época, além de participantes do quilate de Chateau Haut-Brion e Mouton-Rothschild. No entanto, os grandes vencedores do concurso não foram os franceses, até então senhores absolutos do lugar mais alto do mundo do vinho, e sim os desconhecidos, subjugados e até inferiorizados vinhos californianos.

O clima instaurado na França por conta dessa “tragédia” rendeu críticas e deboches à degustação por parte dos maiores veículos de comunicação franceses, porém, a opinião dos especialistas foi clara em declarar o Cabernet Sauvignon Stag's Leap Wine Cellars de 1973 e o Chardonnay Chateau Montelena 1973 como os grandes campeões.

Não há como saber se o resultado seria outro se os julgadores soubessem o que estavam avaliando ou há quanto o vinho californiano já possuía tal qualidade, mas não era reconhecido. O que se sabe, é que desde então a California colocou de uma vez por todas seu pininho no mapa mundi da rolha.

O Dilema de Taittinger

Certa vez, uns tempos atrás, quando a sensibilidade me pegou desprevenido, disse que há muitos ciclos na vida, ciclos esses que se iniciam e terminam sem aviso, apenas acontecem. A tal dinâmica da vida.

Redundâncias a parte, cada um é o que é. Ou seja, somos frutos da nossa genética e do que o ambiente que nos cerca nos proporciona. Todos nós temos nossa fonte, onde buscamos o que é preciso para, como disse Nietzsche, nos tornarmos quem somos.

Esses ciclos são fundamentalmente compostos de eventos únicos, primeiros, que nos levam a uma situação até então nova, diversa do que nos era habitual. Evoluímos, portanto, buscamos melhorar, ampliar nosso espectro. E cada um ao seu ritmo, se vai caminhando.

Que o mundo dá voltas todo mundo sabe, mas as voltas que damos no mundo, uns sabem, outros não e tem os que ainda acham que entendem. O que os olhos não vêem o coração não sente, então é preciso ir atrás de insumos, matéria-prima para os nossos corações e acredite, todos fazemos isso o tempo inteiro.

Estamos sempre atrás dessas novas experiências, que nos completam, nos transformam e elas acontecem num ritmo extremamente rápido, que muitas vezes não nos permitem realizar o que já conquistamos, o que temos e o que deixamos para trás.

É muito fácil falar sobre isso, que de tempos em tempos devemos nos revisitar, pensar no que passou e nos planos que deixamos pelo caminho, mas como que realmente compreendemos e temos a verdadeira noção do que temos?

Não tendo.

Experimentando a ausência das nossas conquistas nos torna realmente capazes de entender o que elas representaram, não tendo alguém que se gosta por perto, se entende o quanto importante a pessoa é.

É uma caminhada complicada, para se saber o quanto importante, é preciso perder, ausentar; um passo escuro, pois até o momento de andar não há como saber o que está prestes a se perder. Mais vale estar sempre perto e não reconhecer a importância ou estar distante e reconhecer o seu valor?

Há quem diga que não é preciso nada disso, quando se sabe, se sabe; desde o primeiro minuto e para sempre, dizem...se é verdade, não sei, mas sei que não foi assim em Saint-Rémi Basilica.

Em 2005, a família Taittinger resolveu vender seus negócios que, além da famosa casa de champagne, incluía outros artigos de luxo como os cristais Baccarat e o hotel Crillon. A família havia crescido bastante desde 1934 quando Pierre Taittinger comprou o então Château de la Marquetterie e seus vinhedos para mostrar ao mundo o Champagne Taittinger.

A terceira geração, aparentemente, não dividia os ideais dos avós, o orgulho de fazer um cuvée delicado, com um olhar voltado para a harmonização gastronômica que é aclamado como um dos mais conceituados do mundo e também um dos melhores da França, um planeta a parte.

Aparentemente... um ano depois, um neto de Pierre, Pierre-Emanuel Taittinger reuniu todas as forças que possuía e também outras forças bancárias e recomprou a vinícola, alegando que a venda havia sido como a perda da sua identidade e a traição de suas raízes.

Hoje, felizmente a Taittinger continua a ser uma das mais respeitadas vinícolas e seu Comtes de Champagne permanece entre os mais nobres vinhos daquela região.

Por mais aclamado e explicado que um sentimento seja, ele só vai ser entendido se sentido na pele; a teoria é sempre muito útil, mas na prática é que se compreende as verdadeiras necessidades e se conhece as íntimas emoções.

Ao menos dessa vez, Vovô Pierre descansa em paz e seu neto sorri, próximo, e sabedor do valor, do seu tesouro.